quinta-feira, maio 17, 2007


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CÂNDIDO MONTEIRO

ÁGUAS DE REGA E LIMA,
SEU APROVEITAMENTO E IMPLICÂNCIAS











Os conflitos domésticos relacionados com as águas de rega não são velhos. Nos tempos medievais, as terras não estavam tão divididas como estão hoje. As grandes extensões, como lugares e aldeias inteiras, pertenciam ao rei (os reguengos, os aforamentos), nobres, cavaleiros e ao clero (os coutos, as imensas áreas conventuais). Nessa época, vivia-se com muitos condicionalismos sociais: «cultivar a terra e alimentar os animais é para o vilão (o antepassado dos nossos camponeses) a batalha. Porque os cavaleiros e o clero vivem do que eles trabalham.
O vilão trabalha muito e sofre: semeia o trigo, o centeio, grada a aveia, ceifa o prado, tosquia a lã, faz as cercas, levanta paliçadas, cava os viveiros nos rios, cumpre corveias, sofre as pilhagens e paga cem direitos.
Nunca comerá bom pão.
Se tem um bom pato ou franga, ou bolo, ou farinha branca, destina-se aos seus senhores.
E se tem vinho da sua vinha, o senhor engana-o com louvores ou olhares, de tal maneira que o seduz e lhe fica com ele.
O camponês nunca prova um bom bocado, nem de ave nem de caça. Se tem pão escuro, leite ou manteiga, já fica contente.» Mas vive tranquilo com a ajuda da filharada. E quando rega as terras não sofre ameaças dos vizinhos porque até a água, o ribeiro e a nascente são do senhor.
A divisão das propriedades no nosso reino, ao contrário dos países do norte, fez-se tarde. Foi preciso acabar com o morgadio, com esse conjunto de bens vinculados, indivisíveis e inalienáveis que, por morte do possuidor, passava apenas para o filho mais velho. Quando lido com este conceito de «morgadio», chegam-me sempre as recordações das primeiras leituras, da descoberta dos primeiros livros. Entre eles, a Morgadinha dos Canaviais de Júlio Diniz.
Vejo então um fidalgo de Lisboa a caminho da província. Vem a ares e mostra-se impaciente para chegar ao destino. E por isso não cessa de interpelar o companheiro de jornada:
- Onde está a aldeia que dizias, homem?
- Daí já se vê disse o almocreve, correndo para alcançar o cavaleiro. Não vê V. S.a, além, além, aqueles pinheirais mansos?
- Vejo, sim.
- Pois já são da freguesia. Se fosse mais claro havia de avistar a casa do guarda. E a tapada dos Bajudos, que pertence à Morgadinha dos Canaviais.»
Descem o vale. O guia não se cala:
« - Estes campos e lameiros ia dizendo são da morgadinha dos Canaviais; andam arrendados a um compadre meu.»
Prosseguem a caminhada com a bênção da música da água e o gemer das rodas das azenhas.
«- São os açudes do Casal dizia o almocreve, berrando para se fazer ouvir através do estrondo da torrente. Pertencem à morgadinha dos Canaviais.» E ainda faltava um bom bocado para chegar à quinta dos Canaviais. Em tais terras não podem emergir disputas de água, como muito bem se pode concluir. Só depois do último quartel do século XIX é que esta situação muda. As propriedades começam a passar para todos os filhos. A divisão das grandes propriedades está em curso e chega aos nossos dias com as atribulações que são conhecidas. Foram necessários corpos de especialistas para gerir as contendas. E é neste contexto que emerge o nosso autor, o Cândido Monteiro, esse grande perito na matéria de divisão de águas. Um homem respeitado no nosso mundo rural pelos conceitos de «justiça» que estão ligados à sua sensibilidade.
Esta obra reflecte apenas uma pequena amostra do seu longo trabalho, do seu contacto estreito com as nossas aldeias. Podemos imaginar a sua ida ao campo, ao eido, à leira e observar ali as nascentes, calcular o caudal de água à hora, ao minuto, registar as variantes que ocorrem nas várias estações do ano, medir as terras, considerar as dificuldades de rega, respeitar as velhas práticas de irrigação e propor depois a repartição das águas de rega para serem sancionadas pelas partes e pela justiça. Trata-se de um documento sociológico de múltiplos significados que coloca em cena um tema fundamental da vida quotidiana da nossa gente do campo: a rega, que «é não só um facto social, uma medida que envolve os seus agentes numa mesma actividade estival, fazendo com que mantenham regularmente entre si e com os outros diversas relações de troca, mas também um facto social total, uma vez que atinge todos os domínios da vida social: o jurídico, o económico, o religioso, o parentesco, a ética e as representações simbólicas
Este trabalho é um importante contributo para estudos mais profundos nas áreas da sociologia e da antropologia.
Por aqui passa muita da sua experiência, o seu testemunho, modos de viver e algumas estórias entre muitas outras que ele guarda e devia contar numa outra hora.


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