sexta-feira, agosto 15, 2008


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CEREJAS DE CELULÓIDE

por

Zilda Cardoso

 

         Nesta obra de Zilda Cardoso, Cerejas de celulóide, o processo narrativo pulsa e respira num universo de nostalgias. Os tempos - o passado, o presente e, por vezes, o futuro - cruzam-se e misturam-se na reconstituição da vida, das formas de vida e pensamentos das várias personagens.

         Ao ler as primeiras páginas, fica-se com a impressão de que a escritora trabalhou o seu texto a partir de fotografias ou de memórias. «Aquela rua», diz-nos ela, «perdeu o encanto. Não há vendedores ambulantes nem pregões, nem a sorte grande nem a língua da sogra. É lugar onde já não fervilham as paixões e em que a poesia das velhas coisas não deixou marca visível: não há ciganas a ler a sina, nem robertos nem ursos bailarinos nem ceguinhos a cantar as desgraças próprias e alheias.» E naquele prédio «nenhuma mulher gasta os cotovelos à janela, nas varandas nem uma criança.» A rua e o prédio mudaram muito, mas as imagens que nos chegam com a luz, a sombra, o ritmo e o poder evocativo da frase, são anteriores a essa mudança. Como na fotografia, «é a evidência da luz que incidiu sobra um objecto específico, num lugar específico, num momento específico. (...) Aquilo que vemos numa foto aconteceu. Às vezes de uma maneira que não sabemos como ou porquê - a fotografia não explica. Mas aqueles objectos e pessoas que se gravaram sobre o filme e hoje são imagens, ontem existiram. É isso que estimula nossa imaginação

E voltando ao livro, à arte de escrever: é isso que traz magia à literatura - a esta literatura que reacende a vida dos homens no tempo e no espaço através de quadros de uma beleza extraordinária.

         Estamos a ver, por exemplo, a Joana: «teria oito anos.»Veste «roupa de seda e delicada capelina de cor natural com um molho de cerejas no alto - as cerejas, vermelho carregado, tocam umas nas outras e fazem um ruído oco, celulóidico, que a obriga a caminhar com a cabeça direita, pescoço esticado    

Não é um encanto?

         A romancista ou a narradora - dizem-nos que o autor nunca é o narrador, mas uma das suas personagens! - não oculta a sua paixão pelas outras artes - a da pintura e a da fotografia (arte da nostalgia, como já lhe chamaram). Não é por acaso que a fotografia aparece também como objecto descrito na obra. «Foi decerto por este tempo, o Abril dos ramos e dos folares, que Maria do Carmo e Afonso tiraram uma fotografia que os filhos conservam entre as suas preciosidades. É uma minúscula e muito velha imagem de kodak, tirada na praça da Liberdade, em frente ao Banco Lisboa & Açores, no começo do Verão.

         Joana ampliou-a e está numa parede do seu quarto com uma bela moldura dourada.

         Maria do Carmo traz um vestido de crepe bastante comprido, (...) chapéu preto de palhinha fina e luvas, e uma magnífica raposa dourada sobre o ombro. (...) Afonso, (...) fato de abas arredondadas, com colete, nó grosso na gravata, chapéu de fita larga (...)

         O sol projecta as suas silhuetas no empedrado branco do passeio...»

         Vale mesmo a pena acompanhar Zilda Cardoso nesta aventura literária, neste belíssimo romance porque cada um de nós vai encontrar-se no meio de pequenos dramas do dia-a-dia, de estórias de «trânsito intenso», vai imaginar composições musicais - o som de um trombone, de um saxofone - e ver, em obras de arte, «uma mulher a estender um lençol muito branco e diversos panos de cores vibrantes», vai deslumbrar-se com o cinema a «preto e branco» ou ao ar livre, «sentado nos bancos do jardim ou nas guias dos passeios» ou então caminhar para a infância e sentir-se como aquela criança a «dançar à chuva com galochas pretas até ao joelho, salpicando nas poças e subindo e descendo o degrau do passeio, balançando o corpo ao pé-coxinho quando vai para a escola em dias de chuva.»