quinta-feira, agosto 24, 2006

luis2101@sapo.pt

Título: A Salvação de Portugal
Autor: José Manuel Pinto Pereira
Editora: Prefácio
Capa: João Nunes

José Manuel Pinto Pereira começa por reflectir sobre a transição da sociedade agrícola para a sociedade industrial. Regista as transformações nas relações pessoais e o emergir de um «individualismo desenfreado.» Olha para os países (com os seus governantes) mal preparados, sem regras, sem ética, muito pouco atentos aos grandes flagelos do momento, fugindo às suas responsabilidades. «O ensino degrada‑se? A criminalidade dispara? A droga propaga‑se? A corrupção instala‑se?... De uma coisa temos antecipadamente a certeza: a culpa não é de certeza absoluta, nem do aluno, nem do professor, nem do delinquente, nem do consumidor, nem do corruptor… O problema, como é de bom tom dizer‑se, é mais vasto… E a conclusão obrigatória e antecipada de todos os inquéritos e relatórios é sempre a mesma: a culpa é da Sociedade ou melhor, não é de ninguém.» Esta é a grande verdade que atravessa constantemente a sociedade portuguesa. Ainda há bem pouco tempo arderam muitos hectares nas matas nacionais, nos parques naturais, desapareceram terrenos de cultivo, casas e utensílios agrícolas, morreram homens e animais. Tem sido assim nos últimos anos. Todos sabemos que a classe política instalada no aparelho de estado não sabe intervir: deixa tudo ao abandono e continua a não mandar fazer a prevenção, a limpeza, a vigilância, o patrulhamento, a abertura de acessos, a criação de fontanários ou bocas de água, a intervenção rápida. Mas desculpam‑se com os tais inquéritos e culpam os incendiários. Se existisse vigilância, comunicações, patrulhamento, os incendiários não chegavam perto das matas ou dos parques! É por isso, para lá de muitos outros factores, que «a confiança dos cidadãos nas instituições políticas tem vindo a diminuir, de forma lenta mas segura.» A gente ligada à política está hoje desfigurada, caiu no ridículo. É gente que não brilha, que não inspira respeito e que representa «um poder político demissionista e complacente que contorna os problemas: ou ignorando‑os, ou criando outros para fazer esquecer os primeiros, ou dialogando sobre eles mas em atitude passiva, tolerante e fatalista.» Muito ainda para ler nesta obra que ergue uma voz lúcida, apaixonada, inteligente. E é necessário fazer coro com ela contra o abaixamento nacional. O país precisa de uma «nova geração de gente» com regras e valores.
luis2101@sapo.pt

Título: Plenitude
Autor: Maria José Lascas Fernandes
Edição: autor
Prefácio: Manuela Rosa

As palavras reinventam a luz, as grandes claridades das paisagens, os perfumes dos montes: «as mulheres branquearam o xisto/ com cal e rendas/ungido com alecrim e incenso.» São quadros poéticos como este que emergem no verso de Maria José Lascas Fernandes. Todo o processo criativo desta obra parece deslizar em busca das imagens do Eu e captar um outro tempo mais rumoroso, mais límpido. E é por isso que por vezes descobrimos uma criança a sonhar de noite («sonhava que abria os braços no alto da eira e voava ») e a aprender de dia «nos livros as palavras que voam e cantam como pássaros», a fazer «a ronda das pereiras no restolho». Num outro belo retrato vê‑se a recordar a Amoreira que o Pai cortou pela raiz. «Acalentei a esperança», diz ela, «de que iria renascer, cobrir‑se de folhas e andorinhas.» O tempo passou. A menina cresceu. Bem se vê que nunca deixou de ser poeta. E encontrou um modo mágico de puxar os dias dos círculos esplendorosos para a sua beira. «Nesta Primavera plantei uma Amoreira, porque o vazio me acompanha.
O lugar da outra não foi preenchido, ali vive o seu espírito e o melhor de mim».
Estamos diante de uma grande poetisa.

terça-feira, março 28, 2006

luis2101@sapo.pt

João-Maria Nabais
Palhais

Edições Ceres e Junta de Freguesia de Palhais, Lisboa, 2002

João Nabais publica agora o seu décimo primeiro livro de poemas. Poeta de uma sensibilidade vibrante, produz uma poesia de forte expressão lírica, iluminada por uma linguagem rumorosa, rente à luz, soberba em imagens.
Na construção dos seus poemas, marcados pelo ritmo solto e pelos versos brancos, incorpora temáticas da vida ribeirinha, instantâneos do quotidiano, momentos lúdicos das crianças, crepúsculos à beira mar, mágicas amorosas ou paixões corporais, ideias sobre o acto da escrita: «escrevo para me libertar».
As palavras movem‑se nas sombras ou nos contrastes das cores, atravessam o «orvalho» ou a «noite densa» para captar a beleza primitiva das coisas num processo criativo de estilização: o «rio adormecido», o «mar de lua-cheia», a «música d'água das cigarras», as «aves», as «gaivotas em terra», o «barco/perdido na maresia», a «vela rasgada», as «chuvas brancas», a «praia», a «maré», a «névoa e cinza».
E com tudo isso depois, nas linhas do texto, exprime a sua percepção poética e o seu estilo plástico. Nesses trilhos percorridos, vai assim ficando a luz na poesia, o lirismo nas fontes íntimas, o feitiço na palavra, a melodia no ritmo interior e o êxtase no pensamento imaginário ou no «sabor impossível da terra antiga».


quinta-feira, março 02, 2006

luis2101@sapo.pt

ANTÓNIO MANUEL COUTO VIANA
ÁLBUM DE FAMÍLIA
Câmara Municipal de Viana do Castelo, Viana do Castelo, 1995

Este texto poético reflecte um exercício de memória fecundante: rein­venta a vida de heróis que se movimentam num espaço e num tempo de vários deslumbramentos. E foi a saudade — «a saudade cheia de emoção «— a dar voz e ânimo ao poeta para realizar um itinerário de reencontros intensamente afectivos. Da evocação genealógica, e numa síntese exemplar, emergem os retratos romanceados em verso que cons­tituem o «álbum de família».
António Manuel Couto Viana transpõe para uma poesia de raiz lírica a tragicidade do romantismo camiliano e a observação minu­ciosa do realismo queiroziano. Para avaliarmos essa emocionalidade bastam alguns versos de um poema de renovação rítmica que põe em cena os «antigos cavalheiros da família»: «surgem todos / De um romântico e imenso guarda-fatos, / Cheirando a naftalina os trajos e os modos, /A caminho do álbum de retratos.» O vestuário e os adornos estão descritos com detalhe: «Sobrecasacas, chapéus altos e, na mão, / Bengala de castão de prata e de marfim. / Um deles, par do reino, ostenta a Conceição /E, no oiro da farda, o mimo do espadim / (Tinha berço e brasão nas terras de Aboím).» As tintas dos esboços deslizam depois para tonalidades sombrias: «um, em tempo de terror, / Teve morte horrorosa, / Com um tiro anarquista, no enterro do escritor, / Conde de Sabugosa.» E, na configuração das tensões amorosas, «outro enlou­queceu pela feitiçaria /Da noiva que o amou e por bem lhe fez mal.» Não é apenas este poema que nos permite constatar a coexistência de temáticas ou de processos literários explícitos nas obras dos dois maiores escritores portugueses do século XIX. Atente-se em outros versos d'«O Avô Suicida»: «O meu Avô paterno era toda a cidade: /A indústria e o comércio (o vapor e a balança); / Bancos, vinhos, Seguros, Casas de Caridade.. . /E agente consular honorário da França. //Na Havaneza da Praça, / Reunia o escol político local. / Iam ali Junqueiro e o Tio Manuel Graça /Escrever versos, palestrar, ler o jornal», ou ainda em «As Mãos de Minha Mãe»: «Meu Pai, jovem alferes, ia a cavalo / Fazer-lhe pé de alferes à quinta; à Meadela. / E ela começou a amá-lo e a esperá-lo / Debruçada à janela.»
São autênticos rimances na multiplicidade dos dois rumos. Por isso (pelo que exprime do seu poder criativo) se vê uma vez mais o invulgar talento poético de António Manuel Couto Viana. Mas a arte poética tem aqui um outro valor, que é admirável: o testemunho histó­rico. Ao ritmo da sua pulsação interior, o poeta revolve o tempo lento do círculo familiar desde a bisavó a inventar biscoito (o biscoito de Viana) às «antigas senhoras da família» inclinadas sobre as artes de distracção (os bordados, os doces, os arranjos florais) ou concentradas na «leitura, à luz do candeeiro», desde o pai a bater-se fervorosamente pela causa monárquica ao primo Zé Antunes a viver o sonho de repu­blicano nas barricadas do «fatal 31 de Janeiro». Mas também se escutam as serenatas e as valsas da Tia Rosalina «pra alegrar as nossas festas» e avivar nas nossas memórias a diversidade da vida profunda.