sábado, janeiro 19, 2008



FRAGMENTOS DE SOMBRAS
de
JOSÉ SOUSA VIEIRA





José Sousa Vieira continua a sua experiência poética‭ ‬sem recusar os momentos de lirismo e‭ ‬de inocência‭ ‬em quadros iluminados‭ ‬por‭ «‬um cavalo de cartão‭» ‬ou pela cal que‭ ‬escorre num banco de avenida,‭ ‬num banco solitário,‭ ‬num banco vazio:‭ «‬um banco branco/desejoso de conversar,‭ ‬/contou-me um segredo/que não me pediu para guardar://‭ ‬disse-me/que,‭ ‬nele,‭ ‬banco branco/‭ ‬por plátanos encoberto,‭ ‬/nas noites de luar,‭ ‬/vem,‭ ‬às escondidas,‭ ‬/o Rio Lima namorar.‭» ‬(1‭)‬ De súbito,‭ ‬um banco vazio‭ ‬-‭ ‬um‭ ‬objecto no espaço‭ ‬abre--se‭ ‬à poesia.‭ ‬(pág.33‭)‬.‭ ‬Esta é sem dúvida a função da arte literária,‭ ‬mas não é única.‭ ‬E o autor tem consciência disso.‭ ‬Aqui,‭ ‬nesta obra,‭ ‬muda‭ ‬várias vezes‭ ‬a atmosfera que se respira.‭ ‬As palavras saltam como chuvas‭ ‬nas quatro estações em paisagens de claridades e de sombras ou de‭ «‬fragmentos de sombras‭»‬.‭ ‬Dão‭ ‬lugar‭ ‬ao fado,‭ ‬talvez‭ ‬ao da saudade,‭ ‬do fatalismo,‭ ‬da resignação ou das cores sombrias das terras minhotas:‭ ‬«também de preto se escondem/Jovens mulheres pela saudade/‭ ‬De luto dos que não podem/Ver sorrir-lhes a idade.‭ ‬//‭ ‬E tanto amor assim perdido/Como o grão que se não colhe,‭ ‬/‭ ‬Na emigração,‭ ‬fado sentido/‭ ‬Da miséria que a nós tolhe.‭» ‬(2‭)‬ E dá-se conta de outras mensagens avessas ao conformismo‭ ‬que‭ ‬transitam‭ ‬nos seus versos‭ ‬em estado de alerta e‭ ‬distantes da alegria ou‭ ‬da festa:‭ ‬é o‭ «‬aroma de espingarda‭» ‬que se espalha no‭ ‬papel e‭ ‬a‭ ‬«mão bruta/astuta prostituta/mão dissimulada‭»‬ (3‭) ‬que‭ ‬emerge como‭ ‬símbolo‭ ‬desprezível‭ ‬da sociedade do nosso tempo.‭ ‬O poeta‭ ‬procura refazer valores e‭ ‬reinventar a vida,‭ ‬mesmo quando canta a sua pátria num tom magoado:

‭«‬Saudoso das naus
naufragadas,
-‭ ‬outros mundos
descobertos-
de mansinho
para não as acordar
Portugal vai-se
afundando
lentamente no mar.‭» ‬(4‭)

Mas‭ ‬não deixa‭ ‬nunca‭ ‬morrer a esperança‭ ‬porque no futuro‭ «‬hão-de navegar sem mar/‭ ‬as naus doutras descobertas/Por Portugal a trilhar.‭» (‬5‭) ‬Trata-se aqui de um‭ ‬sonho,‭ ‬de acreditar na alvorada das ideias novas,‭ ‬no desabrochar de‭ ‬novas mentalidades e‭ ‬da vontade dos homens em‭ ‬construir obras diferentes‭ «‬que nos tirem dos atrasos/das tormentas de betão/‭ ‬que nos deixem menos cores/nos mapas da emigração.‭»‬ (6‭) ‬E por detrás de tudo,‭ ‬«dos outros ventos/em que esta poesia voa‭»‬ (7‭)‬,‭ ‬das imagens não explícitas,‭ ‬dos signos ocultos,‭ ‬a lírica de José Sousa Vieira aproxima-se da Canção de outro poeta:‭



O peso do mundo‭

é o amor.‭



Sob o fardo‭

da solidão,‭

sob o fardo‭

da insatisfação‭


o peso‭

o peso que carregamos‭

é o amor.‭ (‬8‭)

NOTA
A capa e as ilustrações são da autoria de Madalena Martins. A artista carregou esta obra com outros enigmas. Em tons de brancos e negros, em linhas horizontais e verticais, deixou aqui também um sopro poético.





1.Fragmentos de Sombras,‭ ‬Edição de autor,‭ ‬Ponte de Lima,‭ ‬1996,‭ pág‬.33

2.Fragmentos de Sombras,‭ ‬Edição de autor,‭ ‬Ponte de Lima,‭ ‬1996,‭ pág‬.34

3.Fragmentos de Sombras,‭ ‬Edição de autor,‭ ‬Ponte de Lima,‭ ‬1996,‭ pág‬.42

4.Fragmentos de Sombras,‭ ‬Edição de autor,‭ ‬Ponte de Lima,‭ ‬1996,‭ pág‬.52

5.Fragmentos de Sombras,‭ ‬Edição de autor,‭ ‬Ponte de Lima,‭ ‬1996,‭ pág‬.69

6.Fragmentos de Sombras,‭ ‬Edição de autor,‭ ‬Ponte de Lima,‭ ‬1996,‭ pág‬.69

7.Fragmentos de Sombras,‭ ‬Edição de autor,‭ ‬Ponte de Lima,‭ ‬1996,‭ pág‬.75

8.Extracto da Canção de Allen Ginsberg.