domingo, maio 20, 2007


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FEIRAS NOVAS – 1826-2006

DE

AMÂNDIO SOUSA VIEIRA




Depois de «O Minho Pitoresco» de José Augusto Vieira, a bibliografia do Minho e de Ponte de Lima tem agora mais uma obra monumental: Feiras Novas - 1826-2006.

«Amândio de Sousa Vieira foi recolhendo, aqui e acolá,» como já disse noutro sítio, «essas flores roxas e amarelas para colorir e perfumar um dos temas mais atraentes da colectividade limiana»: as nossas festas. Um conjunto imenso de documentos proveniente dos arquivos municipais, das confrarias, da chancelaria régia, da literatura, da imprensa, das artes gráficas, pictóricas e fotográficas, vieram povoar esta obra. Todos esses documentos colocam em cena os homens da terra no espaço e no tempo com os seus sentimentos, as suas crenças, os seus modos de vida, os seus trajes, as suas discórdias, os seus lamentos, os seus dias de alegria, os seus sonhos.

Muito tempo depois, parece-nos escutar ainda a voz do rei, de Dom Pedro IV a fazer saber que os moradores da vila de Ponte de Lima pediam a concessão de três dias de feira anual (19,20,21 de Setembro) para se conservar o culto de Nossa Senhora das Dores. A graça foi concedida no dia de hoje, 5 de Maio, mas no ano já distante de 1826.

São estas fontes que nos encantam porque cativam o tempo longo, o tempo profundo de quase dois séculos e deixam as nossas gentes e as nossas festas na rua em bulício durante aqueles três dias de Setembro. Diante dos nossos olhos deslocam-se os carpinteiros com as tábuas às costas para montar as barracas, milhares de copinhos iluminam as ruas e a porta da Igreja, as tigelas de sebo deixam os seus «lumes» nos canteiros do jardim, nos muros das casas senhoriais e nos monumentos, escutam-se bandas de música e tambores, «tocatas de músicos da aldeia», «descantes e risadas», imagina-se o fogo do ar e preso, o baile mascarado, o baile da espadelada, o cortejo luminoso, a representação teatral, espectáculos de «bailarinas espanholas», a feira do gado, a espera dos toiros e as touradas, o ciclismo, as corridas de automóveis, os jogos de futebol entre o Lusitano Futebol Clube e o Sport Club Vianense, o cinematógrafo popular, o pimpampum e as quermesses, a roda dos cavalinhos e o circo, os gigantones e os cabeçudos, os Zés pereiras, a «missa cantada acompanhada a instrumental» e a procissão. Nestas transposições de memórias, vê-se o povo a encher o areal e o passeio, as «moças, em mangas, coletes vistosos bordados a retrós», os «rapazes, jaqueta ao ombro, chapéu derrubado, ramo de alfádega atrás da orelha» e os «rapagões (…) experimentando as cornetas de barro». Também nos chegam momentos de alguma tristeza: a «chuva torrencial não nos deixou um momento» diz António Feijó numa carta enviada a Luís de Magalhães, seu grande amigo. Nesse ano de 1909,lá está o seu (e o nosso) desalento: «não houve feira, nem fogo, nem iluminações.»

Anos após ano, mil e um quadros das nossas festas foram evocados pela sensibilidade dos nossos prosadores: António Ferreira, Rodrigo Veloso, João Gomes D’Abreu, Miguel de Lemos, Delfim Guimarães, D. João de Castro, José Castilho, Eduardo de Castro e Sousa, Carlos Passos, José Velho Dantas, Conde d’Aurora, o António e a Maria Manuela Couto Viana, Luís Forjaz Trigueiros, António Amorim, Augusto de Castro e Sousa, José Crespo, Francisco Sampaio, Daniel Campelo, José Rosa Araújo, Padre Manuel Dias, Cláudio Lima, Carlindo Vieira, Adelino Tito de Morais, Severino Costa, Franclim Sousa, Amândio Sousa Dantas, José Carlos Magalhães Loureiro, João Barros, Alberto do Vale Loureiro, Faria de Morais, César Lima, José António Cunha, João Carlos Gonçalves, Rodrigo Melo, Maria João Vieira, D. Carlos Martins Pinheiro, Rosário Sá Coutinho e muitos jornalistas anónimos do Comércio do Lima, Estrela do Lima, Echo do Lima, Democracia do Lima, O Lethes, Rio Lima, Cardeal Saraiva, Jornal do Minho, A Semana, Correio do Norte, Vida Nova, A Voz Académica, Povo do Lima, Alto Minho. Entrevistados por César Lima, Aníbal Rocha e Abel Braga deixaram aqui também as suas vivências. Para juntar todo o nosso património cultural vieram também os poetas, a lírica limiana de António Feijó, Pereira da Cunha, Teófilo Carneiro, António Vieira Lisboa, Victor de Castilho, João Marcos, Maria Cândida Brandão, Cláudio Lima, Amândio de Sousa Dantas, Fátima Meireles, José Vieira, Carlos Lima Magalhães, Casimiro Pereira Alves. E por último, os vocabulários significantes da pintura do Américo e do Ovídio Carneiro, da Madalena Vieira Martins e das fotografias do Conde d’Aurora, do Engenheiro João D’Abreu Lima, do José Pereira Marinho, do José Dantas, do Professor José Manuel Silva e do Amândio de Sousa Vieira. E é ele, o Amândio, a lembrar aqui que fotho, em grego, quer dizer luz na nossa língua. A luz mágica das suas fotografias, a luz mágica dos afectos que deixou a palpitar nesta obra, a luz mágica destas imagens…

Luís Dantas

sexta-feira, maio 18, 2007


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CLÁUDIO LIMA:

OS LUGARES DA POESIA


Cláudio Lima acaba de editar a sua segunda obra em verso: Itinerarium. O poeta percorre neste livro os caminhos de uma viagem circular à procura da pureza inicial da palavra. Exprime em vários momentos o desencanto de um tempo concreto ( «a grande melancolia/ de não haver poesia/ até ao fim”) para depois se evadir num universo poético de outras dimensões. Vive e vibra com a sonoridade dos espaços mágicos: “antes da palavra, o sopro/ música singular, fonema/ errático, pulsar de signo/ hibernado”. Porque, afinal, no rumor da água, no canto das aves, nas vozes dos animais, no sibilar do vento, na colocação dos frutos, no crepitar do fogo, nos primeiros objectos e no espanto de todas as coisas está o segredo da palavra. Todo esse espanto significa a passagem para a festa da comunicação:

no tempo em que os homens falavam

as palavras eram nítidas

e vivas

eram palpáveis como coisas

e dóceis

e doces

no tempo em que os homens falavam

as palavras

como coisas:

o arco a funda

o fogo

o hálito lavado do amor

o baptismo imediato do espanto

a pergunta

sem os dígitos banais do telefone

no tempo em que os homens falavam

até os hiatos de silêncio

eram mais papoilas que metáforas”.

Assim emergem pelo conhecimento histórico e pelo ânimo interior do poeta os lugares primitivos e encantatórios da construção mágica da linguagem.

Da interpenetração do homem que escreve no “lento/ (...) ofício da mão» com esses lugares da poesia, a palavra é reinventada e chega até nós num “rumor/de antiquíssimos pastores/ soletrando em flauta/ os meridianos fonemas/ da saudade”.


Luís Dantas


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Amélia Aguiar Andrade
Um Espaço Urbano Medieval:

PONTE DE LIMA


UMA VIAGEM FASCINANTE

ATRAVÉS DE UMA VILA MEDIEVAL



Na tarde em que nos encontramos, na Universidade Nova de Lisboa, a historiadora tem no olhar a luz que se espalha pelos recantos da vila. São recordações da descoberta de "um espaço urbano (que) tinha escapado à descaracterização brutal que atingiu tantos outros núcleos urbanos da região". Frequentava então, no ano lectivo de 1981-82, o curso de mestrado em História Medieval da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. "Do curriculum então em vigor", diz ela, "fazia parte um seminário sobre "cidades medievais portuguesas orientado pelo Professor Doutor A.H. Oliveira Marques, no qual se pedia a cada aluno que escolhesse um núcleo urbano para investigar durante os dois anos que o seminário durava. Para alguém que crescera e sempre vivera no Entre Douro e Minho tornou-se óbvia a preferência por uma vila ou cidade aí situada. E Ponte de Lima parecia ser a escolha certa. " E foi. Feita a opção, a maior parte do seu tempo foi vivida na aventura da descoberta de documentos, de "tudo o que, na herança subsistente do passado, pode ser interpretado, como um índice revelador de qualquer coisa sobre a presença, a actividade, os sentimentos e a mentalidade do homem de outrora". "Tinha conhecimento, através de um inventário de meados do século, da existência de "documentação prometedora" nos nossos arquivos. E the last but not the least (1), havia a certeza de ter encontrado um objecto de pesquisa que nunca deixaria de me surpreender com a sua beleza. " Mas eram necessárias outras buscas: "os fundos documentais conservados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo foram pacientemente percorridos, em busca de documentos que, directa ou indirectamente, se relacionassem com Ponte de Lima." A partir daí, com os seus materiais, foi reconstituindo a paisagem, o espaço urbano e o movimento das «gentes limianas". E é precisamente nesta reconstituição que ressalta o luminoso e admirável talento da historiadora. Depois de percorrermos a sua obra - uma das obras-primas da historiografia limiana! - sentimos o palpitar de outros espaços, de outras ruas e de outras vidas.
De facto, a torrente avassaladora da escrita, que corre num rumor de alegria, arrasta-nos para tempos e espaços até então ocultos. "Espaços intensamente humanizados pontilhavam-se de casas, eiras, adegas e currais e até atafonas". Os ritmos de trabalho aparecem para ligar os homens à história e à comunidade: "tanto se ia à rua das Pereiras para fazer uma pública-forma na casa do tabelião Lourenço Afonso como a um ourives na rua de Braga; remendava-se a roupa velha na rua do Souto, no jubileiro Gonçalo Anes enquanto os serviços de um almocreve se podiam requisitar a Lourenço Esteves morador na rua da Fraria. " Mas as surpresas não acabam aqui. São infinitas. Um exemplo, apenas: se hoje nos deslocarmos à antiga venda do Xico Pessegueiro para beber uma tigela de vinho, não é possível fazê-lo sem evocar com um olhar novo a velha rua da Ribeira com as suas peixeiras. Eu vou lá, ou à antiga rua dos Mercadores, saudar a Amélia. A Amélia Aguiar Andrade, e o seu livro: uma obra para ser lida, amada e recriada por professores de História e alunos das nossas escolas.

Luís Dantas

(1) «o último, mas não o menos importante».

quinta-feira, maio 17, 2007


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CÂNDIDO MONTEIRO

ÁGUAS DE REGA E LIMA,
SEU APROVEITAMENTO E IMPLICÂNCIAS











Os conflitos domésticos relacionados com as águas de rega não são velhos. Nos tempos medievais, as terras não estavam tão divididas como estão hoje. As grandes extensões, como lugares e aldeias inteiras, pertenciam ao rei (os reguengos, os aforamentos), nobres, cavaleiros e ao clero (os coutos, as imensas áreas conventuais). Nessa época, vivia-se com muitos condicionalismos sociais: «cultivar a terra e alimentar os animais é para o vilão (o antepassado dos nossos camponeses) a batalha. Porque os cavaleiros e o clero vivem do que eles trabalham.
O vilão trabalha muito e sofre: semeia o trigo, o centeio, grada a aveia, ceifa o prado, tosquia a lã, faz as cercas, levanta paliçadas, cava os viveiros nos rios, cumpre corveias, sofre as pilhagens e paga cem direitos.
Nunca comerá bom pão.
Se tem um bom pato ou franga, ou bolo, ou farinha branca, destina-se aos seus senhores.
E se tem vinho da sua vinha, o senhor engana-o com louvores ou olhares, de tal maneira que o seduz e lhe fica com ele.
O camponês nunca prova um bom bocado, nem de ave nem de caça. Se tem pão escuro, leite ou manteiga, já fica contente.» Mas vive tranquilo com a ajuda da filharada. E quando rega as terras não sofre ameaças dos vizinhos porque até a água, o ribeiro e a nascente são do senhor.
A divisão das propriedades no nosso reino, ao contrário dos países do norte, fez-se tarde. Foi preciso acabar com o morgadio, com esse conjunto de bens vinculados, indivisíveis e inalienáveis que, por morte do possuidor, passava apenas para o filho mais velho. Quando lido com este conceito de «morgadio», chegam-me sempre as recordações das primeiras leituras, da descoberta dos primeiros livros. Entre eles, a Morgadinha dos Canaviais de Júlio Diniz.
Vejo então um fidalgo de Lisboa a caminho da província. Vem a ares e mostra-se impaciente para chegar ao destino. E por isso não cessa de interpelar o companheiro de jornada:
- Onde está a aldeia que dizias, homem?
- Daí já se vê disse o almocreve, correndo para alcançar o cavaleiro. Não vê V. S.a, além, além, aqueles pinheirais mansos?
- Vejo, sim.
- Pois já são da freguesia. Se fosse mais claro havia de avistar a casa do guarda. E a tapada dos Bajudos, que pertence à Morgadinha dos Canaviais.»
Descem o vale. O guia não se cala:
« - Estes campos e lameiros ia dizendo são da morgadinha dos Canaviais; andam arrendados a um compadre meu.»
Prosseguem a caminhada com a bênção da música da água e o gemer das rodas das azenhas.
«- São os açudes do Casal dizia o almocreve, berrando para se fazer ouvir através do estrondo da torrente. Pertencem à morgadinha dos Canaviais.» E ainda faltava um bom bocado para chegar à quinta dos Canaviais. Em tais terras não podem emergir disputas de água, como muito bem se pode concluir. Só depois do último quartel do século XIX é que esta situação muda. As propriedades começam a passar para todos os filhos. A divisão das grandes propriedades está em curso e chega aos nossos dias com as atribulações que são conhecidas. Foram necessários corpos de especialistas para gerir as contendas. E é neste contexto que emerge o nosso autor, o Cândido Monteiro, esse grande perito na matéria de divisão de águas. Um homem respeitado no nosso mundo rural pelos conceitos de «justiça» que estão ligados à sua sensibilidade.
Esta obra reflecte apenas uma pequena amostra do seu longo trabalho, do seu contacto estreito com as nossas aldeias. Podemos imaginar a sua ida ao campo, ao eido, à leira e observar ali as nascentes, calcular o caudal de água à hora, ao minuto, registar as variantes que ocorrem nas várias estações do ano, medir as terras, considerar as dificuldades de rega, respeitar as velhas práticas de irrigação e propor depois a repartição das águas de rega para serem sancionadas pelas partes e pela justiça. Trata-se de um documento sociológico de múltiplos significados que coloca em cena um tema fundamental da vida quotidiana da nossa gente do campo: a rega, que «é não só um facto social, uma medida que envolve os seus agentes numa mesma actividade estival, fazendo com que mantenham regularmente entre si e com os outros diversas relações de troca, mas também um facto social total, uma vez que atinge todos os domínios da vida social: o jurídico, o económico, o religioso, o parentesco, a ética e as representações simbólicas
Este trabalho é um importante contributo para estudos mais profundos nas áreas da sociologia e da antropologia.
Por aqui passa muita da sua experiência, o seu testemunho, modos de viver e algumas estórias entre muitas outras que ele guarda e devia contar numa outra hora.


segunda-feira, maio 14, 2007


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A FEIRA DE PONTE
Conde d'Aurora

Arquivo de Ponte de Lima, 2005


O sentimento do passado não nos larga, faz parte integrante do homem solitário ou inserido no grupo. As mil e uma experiên­cias vividas directamente ou difundidas pelo costume de cada época animam intensamente a nossa memória social num pro­cesso sublime de fruição e de estremecimento. Mas ao passar dos séculos, desde as culturas orais até aos nossos dias, fi­caram para trás múltiplas representações de uma comunida­de. O historiador de ofício tem a possibilidade de reconstruir quadros remotos e esquecidos, mas também reconhece que muitos outros desapareceram definitivamente. Esta reflexão serve para enaltecer a luz do documento e o gé­nio criador do homem que o transmitiu no seu tempo a outros tempos. E é assim, no meio de um grande regozijo, que esta­mos aqui a evocar com encanto um dos magníficos textos literários de um escritor nato da escola romântica: o Conde d'Aurora. A Feira de Ponte propicia-nos as delícias de uma leitura do começo ao fim. É um registo vivo e flagrante que ilu­mina a cultura da nossa região materna. Um apelo ao olhar para reter a paisagem, a cor, o som e o movimento das imagens. Uma partilha com outros: Oh! Se puderes, forasteiro, vem a Ponte de Lima num dia de mercado. E venha então o leitor-visitante, forasteiro ou não, nesta manhã de sol, desco­brir esta feira de há décadas, diferente das que se realizam hoje às segundas, de quinze em quinze dias (às outras, chama-lhes o povo solteiras).

Luís Dantas

domingo, maio 06, 2007


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ANTÓNIO VIEIRA LISBOA





Poetas assim só aparecem de séculos em séculos e na abundante poesia lírica portuguesa não chegam a contar‑se pelos dedos das duas mãos.

Jaime Brasil

Um lugar dos melhores entre os melhores poetas modernos.

Rebelo de Bettencourt

A marca incontestável dum artista.

Raúl Leal


António Vieira Lisboa publica a maior parte dos seus livros na década de 40 do século XX. Nesse mesmo período encontram‑se a compor a sua experiência criativa outros poetas: Alberto de Serpa, Vitorino Nemésio, Francisco Bugalho, Fausto José, Pedro Homem de Melo, Mário Dionísio, Álvaro Feijó, Joaquim Namorado, Sidónio Muralha, Augusto dos Santos Abranches, Natércia Freire, Irene Lisboa, Rui Cinatti, Tomaz Kim, José Blanc de Portugal,José Régio, António de Navarro e muitos outros. Os versos movem‑se através das tertúlias de café, dos jornais, dos livros e das revistas que circulam do norte ao sul do país. São múltiplas as tendências e as estéticas em confrontos intermináveis, desde o modernismo ao neo‑realismo. O Poeta de Versos Estranhos (1940) ou de Poemas de Amor e Dúvida (1941) está afastado de todos esses círculos. Talvez se aproxime do grupo ligado aos Cadernos de Poesia(1940), ao seu manifesto: «Destinam‑se estes cadernos a arquivar a actividade da poesia actual sem dependências de escolas ou grupos literários, estéticas ou doutrinas, fórmulas ou programas. A poesia é só uma!»(1)

António Viera Lisboa constrói suas próprias normas no encalço de uma poética personalíssima. Toda a sua arte nasce de uma chama interior, de uma sensação de vazio, de desamparo, de insatisfação. A escrita é o reinventar da vida em águas mais mansas, a busca da quietude plena do espírito, o desfazer do caos. E é quase sempre a mulher que emerge nos versos, nas estrofes: «A terra é seca, é árida, é ingrata/sem ter o olhar de uma mulher./Só a mulher à terra prende e ata/ com invisível nó que o Amor sugere.» (2)De outro modo, a existência não faz sentido. «Tudo o que sinto ou sonho e me desvaira,/ a cor, o som, o aroma da paisagem/ que eu vejo longe porque d’alto paira/ sinto puríssimos em certa imagem...// A imagem d’Essa doce rapariga/alegre, sã e fresca como a aragem/ do Amor que a face ainda me fustiga/ para que eu viva a Vida com coragem.» (3) A mesma obsessão quando a paisagem se desdobra diante dos seus olhos: «Ao longo desse langoroso Lima/ o pensamento em que me alongo pende/ para um barco à vela rio acima, / um barco à vela que na água esplende.// E a vela arfando fresca ao leve vento/ lembra‑me, branca, a sua bela blusa,/ a blusa dela justa – o meu tormento - / com que ficava, olhando-A, tão confusa. // O barco à vela, majestosamente,/ que ao longo desse rio sobe além/ parece‑me Ela a aproximar‑se, rente,/ que em Seu andar inconfundível vem.» (4) Esta imagem não é mais do que o vibrar do sonho na palavra, na música, no ritmo. Uma aspiração profunda realizada no momento encantado de criação que é ao mesmo tempo vida e arte, realidade e fantasia, serenidade e arrebatamento, finito e infinito. Foi o modo que o poeta achou para «Viver a Vida toda Amor/só ao sabor/ do Coração.» (5) Mas a paixão sublime ficou apenas na sua lírica amorosa e sensual, na mulher que tão depressa aparece como desaparece do seu caminho. E é isso que se pode constatar no poema Na Cidade: «Essa de que nem sei o nome/ segui-A ao longo da Cidade plena/ de gente que ia e vinha lesta...// Depois perdi‑A/ na multidão...// Mas para sempre me deixou em cada artéria/ do Coração/ essa lembrança duma moça esguia/ frágil e séria/ que um dia vi com emoção.// Segui o meu destino...// Por mais que ande,/ não tornarei a ver seu Corpo fino...// A Cidade é tão grande!...» (6) Num outro exercício muito semelhante, A uma Desconhecida, regista as mesmas comoções vertiginosas: «Esse olhar íntimo mas fugitivo/ duma Desconhecida penetrou‑me/ de tal maneira a minha Alma ao vivo/ que pensativo, triste até, deixou‑me.// Esse olhar doce, súplice estragou‑me,/ assim tão momentâneo e tão preciso,/ a tarde toda... O meu prazer levou‑me.// E eu vendo‑A, estático, indeciso,/ fiquei‑me a olhá-La, alheio e só, perplexo...// !¿ Porque não segui eu essa mulher/ se ainda agora o Seu olhar me fere?!// ¿ Era o Amor que me passou à beira?/ ¿ A imagem d’Ele em pálido reflexo/ neste bulício da cidade inteira/ quase sem tempo em seu viver sem nexo?» (7)

António Vieira Lisboa foi o poeta das emoções, o cantor do Amor e da Mulher, mas foi também o cantor do Lima: «Sete vezes o Rio há‑de encher/ e subir ao «Passeio» da vila./ Cada vez há‑de ser Lua Cheia/ que, ao descer o «Passeio», vigila.// Doze meses é quanto medeia/ cada ciclo dos tais que hão‑de ser./ Sete vezes será Lua Cheia./Sete cheias o Rio há‑de ter.// Sete vezes, não mais, nunca menos/ p’ra que o ano nos venha folgado.../ P’ra que haja bons milhos, bons fenos/ - a fartura da gente e do gado.» (8)

Luís Dantas

NOTAS

(1) João Gaspar Simões, Itinerário Histórico da Poesia Portuguesa, Biblioteca Arcádia de Bolso, Lisboa, pg. 372

(2)António Vieira Lisboa, Chão de Amor, Editorial Nós, Braga, 1944, pg. 5

(3)António Vieira Lisboa, Chão de Amor, Editorial Nós, Braga, 1944, pg.11

(4)António Vieira Lisboa, Ao Longo do Rio Azul, Edição de Autor, Ponte de Lima, 1949, pg. 12

(5)António Vieira Lisboa, Versos Estranhos, Livraria Portugália, Lisboa, 1940, pg.8

(6)António Vieira Lisboa, Versos Estranhos, Livraria Portugália, Lisboa, 1940, pp.44-45

(7)António Vieira Lisboa, Mulheres, Livraria Bertrand, Lisboa, 1942, pg. 45

(8) António Vieira Lisboa, Ao Longo do Rio Azul, Edição de Autor, Ponte de Lima, 1949, pg. 50

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NORTON DE MATOS
VERSUS
EGAS MONIZ

UM DUELO HISTÓRICO

POR JOÃO DE ARAÚJO PIMENTA



O livro «Norton de Matos Versus Egas Moniz - um Duelo Histórico» vem evocar um quadro paradoxal das relações dos homens no tempo. O autor, que pertence a uma geração de médicos que trouxe renovação à prática da medicina, fez uma pesquisa fecunda e construiu uma síntese admirável sobre o duelo , a vida e a morte, as controvérsias, os códigos, os rituais, as armas, o elenco de apoio. « A acompanhar os padrinhos havia a indispensável equipa médica não só para tratar os possíveis feridos, mas também para emitir parecer acerca da importância dos ferimentos na prossecução ou não da luta, e ainda para a desinfecção das espadas, tarefa realizada antes do prélio e sempre que ao decorrer destes houvesse algum toque fortuito de arma no solo. A prática corrente desta desinfecção talvez explique a raridade de referências na nossa literatura médica a casos de tétano nos duelistas, se levarmos em conta o risco que estes corriam de, com os ferimentos, contraírem esta infecção grave».(1)

E estamos assim colocados em face do evento aqui tratado na conjuntura agitada da época: « o Regicídio de 1 de Fevereiro de 1908, a Revolução de 5 de Outubro de 1910, as lides das sociedades secretas, os surtos de greves, sedições e tumultos acentuaram esse alvoroço, em especial nas classes política e militar da capital. A aumentar este desvario surgiu uma onda de duelos no seio destas mesmas classes cujos membros, envolvidos numa notória impunidade, procuravam usar esta forma de combate para lavar as mal chamadas questões de honra.» (2)

Egas Moniz fez nessa ocasião um discurso na Câmara dos Deputados sobre a questão de Ambaca. «Após citar o meu nome», disse Norton de Matos, empregou expressões que me ofendem na minha honra e dignidade.» (3)Como não houve desagravo, os dois vultos da nossa história cruzaram armas para matar ou morrer. Mas o desfecho não foi trágico: ambos ficaram feridos. Mais grave foi a lesão de Norton de Matos e por isso, na opinião dos médicos, «o duelo não podia prosseguir». (4)

João de Araújo Pimenta deixou nesta obra um registo vibrante e pormenorizado que é imprescindível para a outra História: a das Mentalidades.

Luís Dantas

(1) João de Araújo Pimenta, obra citada, pp. 17-18

(2) João de Araújo Pimenta, obra citada, pg. 7

(3) João de Araújo Pimenta, obra citada, pg. 31

(4) João de Araújo Pimenta, obra citada, pg. 43