segunda-feira, março 22, 2010


POEMAS DA EMIGRAÇÃO


AMÂNDIO SOUSA DANTAS


Trajecto dum emigrante poeta


Prefácio


O fenómeno social excepcional que foi a saída (e fuga) do país nos anos sessenta e inícios de 70 do século passado, que envolveu na sua maior parte a juventude, e determinou a fixação em França, na Alemanha e em outros países de centenas de milhar de portugueses, ainda que tenha dado lugar ao aparecimento de uma poesia verdadeiramente distinta e de indiscutível afirmação, não teve ainda quem a estudasse devidamente a ponto de ser devidamente reconhecida (1). Uma parte dessa juventude, a mais letrada, regressou ao país após a revolução do 25 de Abril aí desempenhando um papel destacado tanto nas letras como na esfera sociopolítica. Alguns artigos revelaram aspectos da expressão poética daí derivada e, estamos certos, que não tardará a ser melhor estudada. O lugar que ocupará na cultura portuguesa essa actividade criativa (inclusivamente no domínio mais interferente da música) está garantido por se associar ao movimento social e político que marcou o último terço desse século.

Através das duas principais revistas que nasceram entre os portugueses residentes na Europa - Peregrinação (1985-1995) e Latitudes (1997-...) tivemos oportunidade de conhecer de perto a criação poética de Amândio Sousa Dantas que, muito jovem, publicou o seu primeiro livro, Sentimento de Ausência, em Osnabrück, no norte da Alemanha, seguindo-se outros, antes de regressar à sua terra de origem, o prolífero e acolhedor Minho. Ao reunir agora poesia dos seus primeiros quatro livros, pensada e sentida no exterior, evidencia a sua fidelidade a uma juventude conturbada que talentosamente soube superar pelo risco da escrita, o modo de expressão que brota naturalmente das suas veias. A sua escrita actual, não obstante conservar a mesma elegância, denota maior hermetismo ao mesmo tempo que se abre para temáticas que conquistaram oportunidade.

Desde o início, os seus versos nos impressionam pelo seu ritmado encadear que aparenta inspirar-se dos clássicos renascentistas. Eles são alimentados pela sensação da continuidade, por um devir que torna as acções mais vivas, mais coloridas, que foi identificado àquele período excepcional de grandes mudanças civilizacionais. Foi então que os portugueses conheceram um período áureo com as Descobertas, o seu maior feito. Esta herança de Amândio Sousa Dantas permanece um mistério que só pode advir da identificação

com uma música pessoal, recôndita e obscura, um sentir inconsciente, certamente, que abriga o seu talento poético.

Havíamos identificado noutro texto, nos tons dos versos de Amândio S. Dantas uma musicalidade individualizada e no livro, Emigrar na Primavera (1991) a presença e quase instalação num mundo perdido, marcado pela desintegração da natureza, sugere-nos a dolorosa decepção do poeta de cans, Sá de Miranda; cujo amargurado retiro se verificou nas mesmas terras do verde Minho. Pelo meio das árvores transformadas, de águas e folhas iça-se uma dor psicológica, afectiva, qual fenda, inserida noutra poética mais actual mas igualmente subtil, maviosa e dolente.

Amândio, porém, percorre outros espaços. Em “Junto às estações o coração" podemos apreender um distinto arranjo formal, próximo da experiência interseccionista de Fernando Pessoa, que assimila inclusivamente um trabalho vocabular que teve em Gastão Cruz, da Poesia 61, o maior cultor. Numa simplicidade pagã - que herança terá do mestre Alberto Caeiro? - em versos curtos, aparentemente desordenados, reencontramos, em filigrana, uma assimilação de variadas leituras, que dotam a sua poesia duma tensão intrínseca e de maior densidade. Há efectivamente nesta recolha de poemas uma atmosfera angustiante, prefigurando a sensação de perda. A observação e apreciação do silêncio - com uma presença intensiva e inesperada para a mente de um jovem - dá as mãos à saudade, que se repete sem receio nem vergonha, perscrutando um sinal, uma carta, construindo uma sensação de solidão sem excessivo desespero, numa acalmia bem portuguesa, desconhecedora de excessos. Alguns, erradamente, alvitrariam a subserviência a um destino predeterminado, irremediável de configuração ancestral.

No entanto, o poeta abre outras frestas para o mundo, para a encantadora natureza e inclusivamente se mostra sensível a uma cena inabitual de comunhão de patriotismo à volta duma mesa, experimentada no seu exílio no Norte da Europa. Por aí passa a defesa e ilustração da cidade germânica de adopção, associada a génios da música e da poesia. Por esta dimensão exteriorizada, o lirismo melancólico passa a uma plataforma outra, da ordem do colectivo, provinda dessa vivência que coube à juventude portuguesa nas ditas décadas. A arte poética de Amândio, retirando pela sua curiosidade inquieta, as pulsações dos novos ambientes, engrandeceu o universo lusitano de novas paisagens e impressões num movimento apertado mas de abertura embora prematuro no tempo. O regresso ao país haveria de provocar o surgimento de um novo ciclo.

As composições aqui reunidas fruto das suas primícias poéticas, criadas num clima tão particular, comportam, como sucintamente apontámos, além dum significado estético, uma imagética distinta intimamente ligada ao espaço geográfico e ao tempo psicológico vividos, e que ficarão a assinalar um caminho irreversível que por intermédio do seu talento poético é proporcionado a todos nós e para sempre. Este acto editorial pode encarar-se ainda como um marco assinalável nas terras do Norte de Portugal, das que mais verteram gente pela Europa fora, provocado pelos egoísmos duma minoria, lançando o país e a sua juventude numa intolerável aventura humana. No seu estro poético Amândio havia de aperfeiçoar o seu modo de resistência, tal bóia de náufrago no largo atlântico.

1. O que dizemos relativamente à poesia se pode dizer em relação a outras dimensões da vida cultural e social. Ainda não chegou a hora de aquilatar desse contributo provindo dos exilados (ou novos estrangeirados).

Janeiro 2010

Daniel Lacerda

director da revista Latitudes (Paris)