quarta-feira, junho 08, 2005

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AÇORIANIDADE E VIDAS MARGINAIS NO ROMANCE DE ÁLAMO OLIVEIRA: «PÁTIO D'ALFÂNDEGA/MEIA NOITE»
O que nos deslumbra neste romance são as perspectivas infinitas sobre o espaço (os espaços) e a vida. 0 "Pátio d'Alfândega com o seu banco verde" (centro do mundo concreto e imagético de Álamo 0liveira) representa o espaço civilizacional, o lugar privilegiado dos encontros, dos repousos breves, dos silêncios, das cumplicidades, dos beijos furtivos, dos amores ousados, da invenção vocabular, do metaforismo, dos sonhos desfeitos, dos choros musicais, da poesia errabunda, da rebeldia solitária, das coisas memoráveis. A partir dessa zona, quase sempre, o narrador dilata o campo visual em continuidades perceptivas, e reacende outros espaços (espaços encarnados, espaços da açorianidade) num diálogo incessante."Lá está o Monte do Brasil afocinhado na água em repouso eterno. Do outro lado, o cais parece mais pequeno, fantasmado sobre a luz de néon. Os barcos, acostados de fresco, estão quietos e moles. Era um deserto com objectos e alguns sons de surdina. Um deserto minúsculo, escuro. Também o Pátio d'Alfândega, deserto."
A circularidade dessas viagens dos sentidos não é casual. Muito intencionalmente, o acto de olhar e de ouvir fixa-se no ponto de partida, no "Pátio d'Alfândega". E eis de novo esse movimento perpétuo, essa circularidade conceptual: "À meia-noite, o paquete na partida. Era um pequeno arraial de luzes que se ia sumindo no espaço escuro. Todos olhavam para aquele escorregar vagaroso do navio sobre as águas. E o coração saltava lá para dentro, no desejo imenso de partir, de ir a outras terras, a outras cidades, para conhecer as grandes liberdades, as grandes prisões, as multidões a vaguear nos grandes espaços, o testemunhar a redondeza do mundo. Nesses minutos em que o navio se perdia na escuridão, todos os sonhos eram vividos no cais sob a grandeza das realidades. Naquele momento, tudo era possível - ser rei absoluto do coração. Então, na ilha, nada era mais triste do que ver aquele navio a sumir-se sobre as águas. E tudo isto enquanto os empregados do Café Atlântico, sempre de casaca, luvas e papilhão, empilhavam as mesas e as cadeiras. Só, então as pessoas desapareciam pela rua Direita acima, de costas para o mar. Era então o funeral da vida. 0 Pátio d'Alfândega ficava vazio".
As imagens possuem o simbolismo e as vibrações da vivência insular. Há algo de mágico nesta escrita em círculos: ela revolve a alma das personagens que emergem do universo da marginalidade. O Poeta Porreirinho, a Rosa Cambadinha e o Patachão."Três. Dois deles mortos ". A morte do poeta já se esperava. Andava com cores. Não comia. Bebia." A da Rosa, fora o epílogo de uma paixão: " uma homenagem ao poeta." Ficou o Patachão, "herdeiro de um espólio cujo autor fizera gala em o deixar no mais belo estado de confusão."
Arrebatado por uma amizade esplendorosa ( "Poeta Porreirinho lhe chamei quando falei com ele pela primeira vez") tenta organizar pacientemente as folhas do romance "Pátio d'Alfândega/Meia Noite". E para possuir o sonho que o texto exprime ( a edição da obra, a celebridade do poeta), vive uma aventura patética para sensibilizar a intelectualidade instalada na cidade, nas instituições culturais, nas editoras. Mas é um esforço inglório. E decide então, num momento de cólera e sarcasmo, publicar o romance no fogo.
A sensação com que depois ficamos é a de uma dúvida atroz: existia ou não génio literário nos manuscritos do Poeta Porreirinho? Os fragmentos do romance, que constituem uma experiência de intertextualidade bem sucedida, conduzem-nos para uma leitura enigmática e para o fascinante acto de ler...

Luís Dantas

Título: Pátio d'Alfândega/Meia Noite
Autor: Álamo Oliveira
Capa: Estudios Vega, com base numa fotografia do Arq. Ângelo Regojo