segunda-feira, junho 08, 2009











AS MULHERES AVENTUREIRAS
DE
ROSÁRIO SÁ COUTINHO


As Mulheres Aventureiras de Rosário Sá Coutinho movem-se no deambular do tempo (desde o século XVI até ao século XIX) e em diferentes espaços (Lisboa, Portugal; Arzila, Agadir, Ceuta e Mazagão, em Marrocos, na África do Norte; Goa, na costa ocidental da Índia; Moçambique, na África Oriental e Aramaré, Baía, no Brasil). No contexto da conquista e da colonização portuguesa, a vida destas heroínas reaparece na história com a claridade reinventada por um processo criador em permanente alegria, tal é o modo de ler, de olhar o passado, de seguir as personagens em todos os momentos, na alegria e na tristeza, no amor e na raiva, na paz e na guerra. Lá está D. Isabel Henriques, condessa do Redondo, com outras mulheres, a defender a fortaleza: «carregava cestos cheios de pedras para o muro, para entulhar as portas por onde os mouros tentavam entrar; recolhia as setas lançadas pelo inimigo para o interior da praça, que consertava para poderem ser reutilizadas; derretia chumbo para os pelouros que os nossos arremetiam contra o infiel, cozinhava e distribuía os alimentos aos soldados que combatiam nas ameias horas a fio.» (1) Noutras ocasiões, em que tudo era feito para resgatar prisioneiros, o emissário que vai à tenda do Rei de Fez leva não só o apelo feminino, mas «duas cargas de cousas d’açuquere, e asi de conservas como de bolinhos.» (2) E, como saísse das páginas de um romance belíssimo, repleto de tensões, desfila diante dos nossos olhos, D. Mécia de Monroy, filha de capitão, cativa cristã, acorrentada diante do xerife, a inspirar uma grande paixão ao mouro… Vem depois, D. Maria de Eça, a capitanear a Praça de Ceuta, na ausência do marido, num período conturbado. De um outro mundo, não de um conto de fadas de Charles Perrault, mas da zona pobre dos pescadores da ria de Aveiro, surge uma das figuras mais fascinantes desta obra, uma mulher de grande valor e coragem esquecida pela literatura ou pintura romântica: Antónia Rodrigues. A Antónia foi enviada para «casa da irmã mais velha em Lisboa» (3), e não teve vida fácil. Como de costume, a «pequena fora arrancada da cama aos primeiros raios de sol, posta a esfregar o chão e mandada, a gritos, ir buscar água à fonte. Acarretara o pesado balde encosta acima, apenas para ouvir mais gritos quando o apresentou meio cheio. Escorregara pelo caminho, entornara um pouco e esfolara os joelhos. Mas ninguém se compadeceu. Que voltasse atrás para o encher de novo.» 4 Um dia, farta de maus tratos, «foi, pé ante pé, buscar a caixa de latão que guardava escondida debaixo de uma tábua solta do soalho» (5), fez a trouxa, cavou de casa, afastou-se para a parte baixa da cidade e «foi à rua onde vendem vestidos feitos, e desse pequeno pecúlio que tinha comprou um vestido conforme ao trajo dos moços que servem no mar em navios merchantes» - um par de calças roçadas, uma camisa e um barrete.» (6) Disfarçada de grumete, inicia a sua proeza a bordo de uma nau a caminho de Mazagão. Em lá chegando, vira soldado, cavaleiro valente.
O leitor vai descobrir ainda D. Juliana Dias da Costa a viver longos anos na Índia, na corte mongol; D. Leonor Tomásia, Marquesa de Távora, no Vice-reino em Goa; D. Francisca Chiponda, senhora abastada, poderosa, em tratos comerciais nas terras de Moçambique e a letrada D. Maria Bárbara Garcês Pinto de Madureira à frente do engenho de Aramé, na Baía, Brasil.
Rosário Sá Coutinho identificou-se com essas protagonistas e transpôs com paixão para a palavra límpida, vibrante, emotiva e apaixonada, os seus perfis, mentalidades, atitudes, falas, gemidos, vestuários, composturas do cabelo, ambientes exóticos, troadas de guerra. E As Mulheres Aventureiras, aí estão: evadiram-se dos quadros opacos de várias épocas para povoar agora as páginas da história nova com toda a força criadora de outra mulher, a Rosário, que revela aqui o seu talento como autora de uma grande obra literária ou histórica.





NOTAS
(1), Rosário Sá Coutinho, Mulheres Aventureiras, a esfera dos livros, Lisboa, 2009, pg.26
(2) Idem, idem, pg. 34
(3) Idem, idem, pg. 76
(4) Idem, idem, pg. 76
(5) Idem, idem, pg. 78
(6) Idem, idem, pg. 78