luis2101@sapo.pt
MATA COUROS ou as “GUERRAS” do Capitão Agostinho, Carlos Gueifão, Universitária Editora, Lisboa, 1998
Um poeta passou pela guerra sem perder a inocência e conseguiu reter as imagens belas da camaradagem e do amor pelo ser humano, ainda que lutasse do outro lado da barricada.
Disfarçado soba penumbra do tempo, vestindo a capa dum imaginário sui generis, traz nos o testemunho duma época que marcou profundamente a maioria dos nossos contemporâneos.
Tempo de guerra mas também de aventura, bem ao jeito da idade que tínhamos na altura dos acontecimentos relatados, conseguiu isolar, com um talento muito peculiar, momentos de evasão característicos dum ambiente que a amizade sempre foi pródiga em criar, principalmente por entre os demónios da batalha.
Ao abrir as janelas do passado, Carlos Gueifão dá nos uma saborosa lição de futuro. A jovialidade dos cinquenta mantém se bem fiel à juventude dos vinte.
Tanto na preparação da partida como nos acontecimentos vividos lá fora, quer ainda no regresso pleno de recordações e da satisfação do dever cumprido – em toda a sequência emerge um espírito de missão hoje tão esquecido por gregos e troianos – o Autor conseguiu, de forma coloquial e simples, contar-nos pequenas histórias agregadas pelo cimento dum período em que a melhor parte de todos nós foi enfrentar riscos ignorados e desvendar caminhos por entre os capinzais da surpresa ou do sobressalto.
Trinta anos volvidos, vem a dar se o afloramento dum sindroma que, por esperado, não de deixa de ser preocupante. É a Perturbação pós Stress Traumático, mais conhecida por Stress de Guerra, que afecta, no dizer de alguns especialistas, um número significativo dos então jovens combatentes que labutaram por terras de África.
Para esses, bom seria que estas histórias breves e simbólicas constituíssem um saudável lenitivo.
Enquanto outros se divertiram, ou consagraram, na descrição apocalíptica da destruição do templo, Carlos Gueifão, humilde e simples, oferece-nos um rosário de impressões sobre um período recheado de horrores, seleccionando os momentos bons vividos por entre a amálgama duma situação global que nada tinha de aprazível.
Bem patente é a sua capacidade de interpelar sem ofender, de criticar sem agredir, de agredir sem magoar, de criar humor num estilo irónico e romântico que até poderá ter o condão de desafiar, quem sabe, algumas vocações adormecidas em vias de despertar para oferecerem o seu contributo ao nosso panorama literário.
Grande é a alma do narrador, colocado em situações quase nunca fáceis, que teve de dirimir. E fê- lo com dignidade, elegância e cavalheirismo.
Burilados pela sua prosa poética, estes textos conseguem mesmo suscitar saudades de tempos e episódios que, filtrados pelo humanismo do Autor, até chegam a parecer felizes embora, de vez em quando, a terra explodisse em rajadas de metralha e os corações se partissem em explosões de amargura.
Conta nos uma história coerente - é fácil encontrar os hífenes da coerência entre os contos diversos com que nos brinda.
Os enigmas ficam nas entrelinhas.
As alcunhas nascem e brotam como flores naturais, rebaptizadas por uma criatividade bem portuguesa, o epíteto imprescindível é bem escolhido, quase sempre o mais adequado para caricaturar ou resumir os factos narrados.
O ineditismo do seu testemunho merece justo reconhecimento, pois, ao elidir quase tudo quanto dividiu as pessoas, lado a lado ou frente a frente, se coloca na posição de encontro, diálogo e solidariedade que hoje enquadra as relações entre os que, tendo combatido entre si, foram capazes de encontrar um património comum e insubstituível que se chama Liberdade.
Estamos perante um exercício de escrita original e puro.
E se fôssemos lê- lo?
“ Tá a andar”!
Maxiais, 3 de Setembro de 1997
Joaquim Evónio de Vasconcelos
sexta-feira, dezembro 26, 2003
quarta-feira, dezembro 24, 2003
luis2101@sapo.pt
“Marcello e Spínola: a Ruptura – As Forças Armadas e a Imprensa na queda do Estado Novo (1973-74)”, Manuel Bernardo,
O desconhecimento do passado, recente ou remoto, nunca será bom conselheiro para quem pretenda compreender o presente e trilhar com segurança os caminhos do futuro.
Este livro, ao desvendar alguns eventos que ainda se podem considerar próximos no tempo, vem proporcionar elementos de informação significativos para a compreensão da conjuntura em que vivemos.
Só o contributo de muitas histórias, todavia, permitirá a explicação da verdadeira História, caracterizadora do espaço-tempo em apreciação, identificadora daquilo que é estável e permanente e não apenas passageiro ou efémero.
Do autor, Manuel Bernardo, poderá dizer-se que nunca conviveu directamente com o poder, embora tivesse estado bem posicionado para lhe avaliar as forças e as fraquezas.
Sempre Maquiavel e nunca Príncipe, quase vítima da voragem totalitária em 1974 e 75, desempenhou corajosamente a missão que se atribuiu de esclarecer a comunidade a que sente pertencer e assim publicou, em 1977, Os “Comandos” no Eixo da Revolução – Crise permanente do PREC.
O facto de estar em consciência seguro da sua verdade não impediria que se visse confrontado, entre outros dissabores, com uma acção no Tribunal e um processo disciplinar do foro militar.
A partir de fins de 1974 quando, atrabiliariamente mas sem sucesso, o quiseram estigmatizar, nunca mais descansou e, fazendo apelo ao seu dever para com todos nós, desencadeou uma notória acção pedagógica, veiculada por diversos periódicos e baseada na essência permanente e profunda das coisas, sublinhando com destemor as contradições emergentes de interesses marginais.
Campeão da perseverança, no desenvolvimento dum trabalho profícuo e rigoroso decidiu frequentar na Universidade Católica Portuguesa o Curso de Ciências da Informação, no âmbito do qual, como dissertação final, acaba de presentear-nos com esta lúcida peça informativa a que chamou “Marcello e Spínola: a Ruptura – As Forças Armadas e a Imprensa na queda do Estado Novo (1973-74)”.
Para isso elegeu o período de dezasseis meses que antecedeu a queda do anterior regime perante o Golpe de Estado de 25 de Abril de 1974.
Embora se acredite que a História é linear e não cíclica, difícil é, todavia, resistir à tentação de estabelecer uma analogia entre o referido período e o que actualmente vivemos.
De acordo com a vox populi, o clientelismo e o nepotismo encontram-se agora tão instalados entre nós como estariam no fim do regime marcelista, configurando um modelo a que poderá aplicar-se, sem grande margem de erro, o epíteto de ditadura administrativa. A grande diferença reside, obviamente, na natureza democrática do regime de hoje e, por inerência, na liberdade de expressão, fomentadora e propiciadora de correntes de opinião.
E este livro pode ser considerado um autêntico elogio da liberdade de expressão.
Manuel Bernardo é dotado duma honestidade intelectual bem patente nesta obra. Por isso não se espere encontrar nem especulação nem apressados juízos de valor.
Temos perante nós o resultado duma pesquisa elaborada por um bom profissional, um repositório de factos a todos os títulos interessante.
A notícia é em si mesma um facto e tende a ser cada vez mais importante que o próprio facto que lhe esteve na origem.
O autor fez reflectir no seu trabalho os enquadramentos então vigentes, tanto a nível nacional como internacional.
Colocou em evidência os silêncios do poder e abordou a patologia da comunicação como autêntica doença de que padecia então o tecido social.
Para os que viveram aquela época (1973-74) trata-se duma saudável recordação, hoje mais esclarecida pelos acontecimentos posteriores; para os mais novos, o testemunho da importância da comunicação, que ora não lhes está vedada, como elemento fundamental para o posicionamento perante os factos e para o fortalecimento da capacidade de opção.
Múltiplas referências são feitas neste livro ao Ultramar, tema de fundo de muitos analistas, e às diversas formas de o conservar ou alienar.
Os militares sabiam, desde 1961, que a Guerra do Ultramar não se ganhava pela força das armas, mas também não ignoravam que se poderia perder de armas na mão.
Por outro lado, por mais que tenha sido conveniente, de modo diferencial conforme o sector considerado, que existia apenas uma guerra, facilita bastante a compreensão não escamotear que havia duas: uma subversiva e outra revolucionária.
E se uma fazia apelo ao romantismo da liberdade por via da libertação, encontrando ecos de legitimidade no espírito dos combatentes que se lhe contrapunham, a outra não passava duma componente da estratégia global e totalitária de luta entre os grandes blocos, sendo ainda de referir que um deles, inibido por tácticas de aparente defesa de valores, vai precisamente permitir a vitória do seu adversário e, por consequência, a destruição irreversível dos próprios valores a que dizia prestar homenagem.
A nível nacional, no campo da oposição, verificava-se uma diferença fundamental entre a plataforma da Ala Liberal, que pugnava pelo estabelecimento das liberdades democráticas como condição prévia para a resolução de todos os problemas do País, incluindo os ultramarinos, e a que viria a ser consagrada no III Congresso da Oposição Democrática, em 1973, em que a primeira prioridade era o fim da guerra, seguida da luta contra o capital monopolista e da conquista das liberdades democráticas.
Que modelo de democracia poderia emergir de uma e de outra era fácil de prever, especialmente à luz do conturbado advento das “independências” africanas.
Voltando às soluções que então se perfilavam, no período de 1973-74 que é objecto deste trabalho, sublinhe-se apenas que não é possível negociar sem dispor de graus de liberdade como sustentáculo da capacidade negocial.
Ao precipitarem-se os acontecimentos, acelerados pela má fé de uns e consentidos pela ingenuidade de outros, não só se inviabilizou a negociação como se criaram situações que ainda hoje perduram e têm, na base, o facto inegável de que foi traída a confiança dos povos ultramarinos que confiaram em nós.
Ao servir-nos factos até agora inéditos ou ao apresentar-nos um pacote informativo bem delineado, Manuel Bernardo vem contribuir para a compreensão de fenómenos até hoje inexplicáveis, ou mal explicados.
Este livro evidencia de forma clara e categórica a importância das ideias e da sua circulação na sociedade, designadamente numa altura em que as pessoas mais carentes delas se encontravam.
O autor perseguiu a verdade com denodo e sem obediências, sistematizou os resultados da sua pesquisa e disso nos dá conta.
Vamos ler.
Lisboa, 12 de Abril de 1994
Joaquim Evónio de Vasconcelos
“Marcello e Spínola: a Ruptura – As Forças Armadas e a Imprensa na queda do Estado Novo (1973-74)”, Manuel Bernardo,
O desconhecimento do passado, recente ou remoto, nunca será bom conselheiro para quem pretenda compreender o presente e trilhar com segurança os caminhos do futuro.
Este livro, ao desvendar alguns eventos que ainda se podem considerar próximos no tempo, vem proporcionar elementos de informação significativos para a compreensão da conjuntura em que vivemos.
Só o contributo de muitas histórias, todavia, permitirá a explicação da verdadeira História, caracterizadora do espaço-tempo em apreciação, identificadora daquilo que é estável e permanente e não apenas passageiro ou efémero.
Do autor, Manuel Bernardo, poderá dizer-se que nunca conviveu directamente com o poder, embora tivesse estado bem posicionado para lhe avaliar as forças e as fraquezas.
Sempre Maquiavel e nunca Príncipe, quase vítima da voragem totalitária em 1974 e 75, desempenhou corajosamente a missão que se atribuiu de esclarecer a comunidade a que sente pertencer e assim publicou, em 1977, Os “Comandos” no Eixo da Revolução – Crise permanente do PREC.
O facto de estar em consciência seguro da sua verdade não impediria que se visse confrontado, entre outros dissabores, com uma acção no Tribunal e um processo disciplinar do foro militar.
A partir de fins de 1974 quando, atrabiliariamente mas sem sucesso, o quiseram estigmatizar, nunca mais descansou e, fazendo apelo ao seu dever para com todos nós, desencadeou uma notória acção pedagógica, veiculada por diversos periódicos e baseada na essência permanente e profunda das coisas, sublinhando com destemor as contradições emergentes de interesses marginais.
Campeão da perseverança, no desenvolvimento dum trabalho profícuo e rigoroso decidiu frequentar na Universidade Católica Portuguesa o Curso de Ciências da Informação, no âmbito do qual, como dissertação final, acaba de presentear-nos com esta lúcida peça informativa a que chamou “Marcello e Spínola: a Ruptura – As Forças Armadas e a Imprensa na queda do Estado Novo (1973-74)”.
Para isso elegeu o período de dezasseis meses que antecedeu a queda do anterior regime perante o Golpe de Estado de 25 de Abril de 1974.
Embora se acredite que a História é linear e não cíclica, difícil é, todavia, resistir à tentação de estabelecer uma analogia entre o referido período e o que actualmente vivemos.
De acordo com a vox populi, o clientelismo e o nepotismo encontram-se agora tão instalados entre nós como estariam no fim do regime marcelista, configurando um modelo a que poderá aplicar-se, sem grande margem de erro, o epíteto de ditadura administrativa. A grande diferença reside, obviamente, na natureza democrática do regime de hoje e, por inerência, na liberdade de expressão, fomentadora e propiciadora de correntes de opinião.
E este livro pode ser considerado um autêntico elogio da liberdade de expressão.
Manuel Bernardo é dotado duma honestidade intelectual bem patente nesta obra. Por isso não se espere encontrar nem especulação nem apressados juízos de valor.
Temos perante nós o resultado duma pesquisa elaborada por um bom profissional, um repositório de factos a todos os títulos interessante.
A notícia é em si mesma um facto e tende a ser cada vez mais importante que o próprio facto que lhe esteve na origem.
O autor fez reflectir no seu trabalho os enquadramentos então vigentes, tanto a nível nacional como internacional.
Colocou em evidência os silêncios do poder e abordou a patologia da comunicação como autêntica doença de que padecia então o tecido social.
Para os que viveram aquela época (1973-74) trata-se duma saudável recordação, hoje mais esclarecida pelos acontecimentos posteriores; para os mais novos, o testemunho da importância da comunicação, que ora não lhes está vedada, como elemento fundamental para o posicionamento perante os factos e para o fortalecimento da capacidade de opção.
Múltiplas referências são feitas neste livro ao Ultramar, tema de fundo de muitos analistas, e às diversas formas de o conservar ou alienar.
Os militares sabiam, desde 1961, que a Guerra do Ultramar não se ganhava pela força das armas, mas também não ignoravam que se poderia perder de armas na mão.
Por outro lado, por mais que tenha sido conveniente, de modo diferencial conforme o sector considerado, que existia apenas uma guerra, facilita bastante a compreensão não escamotear que havia duas: uma subversiva e outra revolucionária.
E se uma fazia apelo ao romantismo da liberdade por via da libertação, encontrando ecos de legitimidade no espírito dos combatentes que se lhe contrapunham, a outra não passava duma componente da estratégia global e totalitária de luta entre os grandes blocos, sendo ainda de referir que um deles, inibido por tácticas de aparente defesa de valores, vai precisamente permitir a vitória do seu adversário e, por consequência, a destruição irreversível dos próprios valores a que dizia prestar homenagem.
A nível nacional, no campo da oposição, verificava-se uma diferença fundamental entre a plataforma da Ala Liberal, que pugnava pelo estabelecimento das liberdades democráticas como condição prévia para a resolução de todos os problemas do País, incluindo os ultramarinos, e a que viria a ser consagrada no III Congresso da Oposição Democrática, em 1973, em que a primeira prioridade era o fim da guerra, seguida da luta contra o capital monopolista e da conquista das liberdades democráticas.
Que modelo de democracia poderia emergir de uma e de outra era fácil de prever, especialmente à luz do conturbado advento das “independências” africanas.
Voltando às soluções que então se perfilavam, no período de 1973-74 que é objecto deste trabalho, sublinhe-se apenas que não é possível negociar sem dispor de graus de liberdade como sustentáculo da capacidade negocial.
Ao precipitarem-se os acontecimentos, acelerados pela má fé de uns e consentidos pela ingenuidade de outros, não só se inviabilizou a negociação como se criaram situações que ainda hoje perduram e têm, na base, o facto inegável de que foi traída a confiança dos povos ultramarinos que confiaram em nós.
Ao servir-nos factos até agora inéditos ou ao apresentar-nos um pacote informativo bem delineado, Manuel Bernardo vem contribuir para a compreensão de fenómenos até hoje inexplicáveis, ou mal explicados.
Este livro evidencia de forma clara e categórica a importância das ideias e da sua circulação na sociedade, designadamente numa altura em que as pessoas mais carentes delas se encontravam.
O autor perseguiu a verdade com denodo e sem obediências, sistematizou os resultados da sua pesquisa e disso nos dá conta.
Vamos ler.
Lisboa, 12 de Abril de 1994
Joaquim Evónio de Vasconcelos
quinta-feira, dezembro 04, 2003
terça-feira, novembro 25, 2003
As Mãos na Pedra, Alice Fergo, Universitária Editora, Lisboa,1995
A SENSUALIDADE DA PEDRA
Fazer o pleno do amor é mais do que levar a banca à glória no jogo da vida. É comunhão cósmica, enlace de corpos inflamados sem barreiras nem remorso, num tropismo positivo e incontrolável. Depois a libertação do espírito pela exclusão do espaço e do tempo, rumores de trigo maduro festejando a alegria dos sentidos.
Vem esta reflexão a propósito de “As Mãos na Pedra”, de Alice Fergo, magia por contágio, mãos geradoras de sensualidade ou pedra que a induz, catalisa e estimula.
De facto, por que não eleger uma pedra, pequena porção de Universo, como espaço descontínuo do sagrado ou do profano? Ou de ambos, se só o amor aglutina as duas componentes em conflito dentro de cada um de nós?
Carnal e puro é o amor respirado em “As Mãos na Pedra”, sem resquícios do pecado original com que a malévola cultura judaico cristã ensombrou durante séculos o mais belo símbolo da comunicação entre os seres humanos.
“Trago morangos na boca
E amoras no desejo
Penduradas à cintura
Noites - romãs, bago a beijo.
Sou cesta de fruta doce
Cheiro a terra a madrugar
Dispo debaixo das árvores
Nuvens que um pássaro me trouxe
Dos abismos de trovar.
Silvestre, mulher e frágua
Bebo das fontes a água,
Sedes minhas, a matar.”
( Pg. 13 )
Sorver este néctar é retornar ao Paraíso inviolado pelos répteis, ser peregrino em busca dum Céu que só existe na Terra, arredio e esquivo, mas que é preciso agarrar quando passa ao nosso alcance, pois é raro como um cometa a desenhar trilhos de luz para todos os amantes do mundo.
O Sol, a Lua e as Estrelas, metáforas da imagética clássica, quedam se pálidos e contemplativos perante o fulgor galáctico que transforma a pedra em vulcão e, depois, em suave areia de praia, num interminável ciclo de tempestade e bonança.
“Por que terei de permanecer humana apenas?
Se o destino do homem é morrer,
Eu peço pouco
Que me deixem ser um vaso louco
Onde o amor plante ciclos de açucenas.”
( Pg. 55 )
O corpo, em Alice Fergo, é a catedral do espírito onde se realiza o ritual do amor. E sem capelas imperfeitas.
joaquim evónio
A SENSUALIDADE DA PEDRA
Fazer o pleno do amor é mais do que levar a banca à glória no jogo da vida. É comunhão cósmica, enlace de corpos inflamados sem barreiras nem remorso, num tropismo positivo e incontrolável. Depois a libertação do espírito pela exclusão do espaço e do tempo, rumores de trigo maduro festejando a alegria dos sentidos.
Vem esta reflexão a propósito de “As Mãos na Pedra”, de Alice Fergo, magia por contágio, mãos geradoras de sensualidade ou pedra que a induz, catalisa e estimula.
De facto, por que não eleger uma pedra, pequena porção de Universo, como espaço descontínuo do sagrado ou do profano? Ou de ambos, se só o amor aglutina as duas componentes em conflito dentro de cada um de nós?
Carnal e puro é o amor respirado em “As Mãos na Pedra”, sem resquícios do pecado original com que a malévola cultura judaico cristã ensombrou durante séculos o mais belo símbolo da comunicação entre os seres humanos.
“Trago morangos na boca
E amoras no desejo
Penduradas à cintura
Noites - romãs, bago a beijo.
Sou cesta de fruta doce
Cheiro a terra a madrugar
Dispo debaixo das árvores
Nuvens que um pássaro me trouxe
Dos abismos de trovar.
Silvestre, mulher e frágua
Bebo das fontes a água,
Sedes minhas, a matar.”
( Pg. 13 )
Sorver este néctar é retornar ao Paraíso inviolado pelos répteis, ser peregrino em busca dum Céu que só existe na Terra, arredio e esquivo, mas que é preciso agarrar quando passa ao nosso alcance, pois é raro como um cometa a desenhar trilhos de luz para todos os amantes do mundo.
O Sol, a Lua e as Estrelas, metáforas da imagética clássica, quedam se pálidos e contemplativos perante o fulgor galáctico que transforma a pedra em vulcão e, depois, em suave areia de praia, num interminável ciclo de tempestade e bonança.
“Por que terei de permanecer humana apenas?
Se o destino do homem é morrer,
Eu peço pouco
Que me deixem ser um vaso louco
Onde o amor plante ciclos de açucenas.”
( Pg. 55 )
O corpo, em Alice Fergo, é a catedral do espírito onde se realiza o ritual do amor. E sem capelas imperfeitas.
joaquim evónio
segunda-feira, novembro 24, 2003
SonhoGrafias, Armando Taborda, Universitária Editora, Lda., Lisboa, 1999
Nesta terceira obra poética, de Armando Taborda, persiste a obsessão pela imagem. A imagem que o poeta capta e interioriza. É esse o mecanismo lúdico que utiliza para «registar emoções». «Nem sempre é fácil/ registar emoções/ da vida/ e assim se perdem poemas/ frequentes/ por falta de tempo/ no momento certo.» A linguagem aqui é aparentemente legível. Mas o poema que assume obviamente um desvio subtil à linguagem comum, projecta uma mágoa, os instantes encantatórios por viver e transmite também a fugacidade da nossa existência. São múltiplos os quadros que se perdem e que o artífice da palavra não tem ocasião de estilizar. Porque não se limita a transpor para a criação literária aquilo que vê e sente ou que é causa de espanto proveniente do mundo exterior. Em busca da síntese da magia, ele estabelece sempre uma relação exterioridade/interioridade e recorre a um processo deslumbrante de mudança sígnica e de estilização. Eis um exemplo admirável: «Emergindo/ por entre brumas/ de chuva/ a cidade/ parece um sonho/ caído/ do céu.» Muitos dos textos estão repletos destes sonhos. São sonhos em sépia, em música, em quarteto, em cinza, em flash, em diálogo e em branco negro, como o autor fez questão de sublinhar na estrutura do seu trabalho. Desta maneira, as imagens desdobram se em vários planos e reflectem a luz da imaginação inventiva. Os poemas, por vezes, transfiguram tudo. A natureza. A vida interior. Os sons. A música de Schubert. «São impromptus/ são conversas secretas/ íntimas/ monólogos a saltar de mente em mente/ são corpos nus/ soltos/ emoções a viajar de som em som/ são impromptus/ já disse.» Estas metamorfoses constituem um dos segredos da criação poética tabordiana. Na sua peregrinação através do cosmos, «por caminhos cruzados/ complexos desvios/ infinitos trilhos», virando as coisas do avesso, vai deixando um rasto de sentimentos emotivos e vibráteis. E nunca se vislumbra um lirismo alegre. O fluxo sonoro é o do silêncio, da chuva, do vento, da água, das batidas do coração, do amor à mulher eleita, do paroxismo: «O cancro nasce sem choro/ inflorescência súbita e perversa/ com a beleza das papoilas que matam/ e liquefazem o corpo/ encapelado mar rubro de dor/ por segundos minutos horas dias meses anos séculos milénios/ eternidade/ no pulsar do coração/ e nas lágrimas caídas gota a gota/ nas flores que sobrevivem na estufa/ do nosso disfarçado/ espanto.»
Nesta terceira obra poética, de Armando Taborda, persiste a obsessão pela imagem. A imagem que o poeta capta e interioriza. É esse o mecanismo lúdico que utiliza para «registar emoções». «Nem sempre é fácil/ registar emoções/ da vida/ e assim se perdem poemas/ frequentes/ por falta de tempo/ no momento certo.» A linguagem aqui é aparentemente legível. Mas o poema que assume obviamente um desvio subtil à linguagem comum, projecta uma mágoa, os instantes encantatórios por viver e transmite também a fugacidade da nossa existência. São múltiplos os quadros que se perdem e que o artífice da palavra não tem ocasião de estilizar. Porque não se limita a transpor para a criação literária aquilo que vê e sente ou que é causa de espanto proveniente do mundo exterior. Em busca da síntese da magia, ele estabelece sempre uma relação exterioridade/interioridade e recorre a um processo deslumbrante de mudança sígnica e de estilização. Eis um exemplo admirável: «Emergindo/ por entre brumas/ de chuva/ a cidade/ parece um sonho/ caído/ do céu.» Muitos dos textos estão repletos destes sonhos. São sonhos em sépia, em música, em quarteto, em cinza, em flash, em diálogo e em branco negro, como o autor fez questão de sublinhar na estrutura do seu trabalho. Desta maneira, as imagens desdobram se em vários planos e reflectem a luz da imaginação inventiva. Os poemas, por vezes, transfiguram tudo. A natureza. A vida interior. Os sons. A música de Schubert. «São impromptus/ são conversas secretas/ íntimas/ monólogos a saltar de mente em mente/ são corpos nus/ soltos/ emoções a viajar de som em som/ são impromptus/ já disse.» Estas metamorfoses constituem um dos segredos da criação poética tabordiana. Na sua peregrinação através do cosmos, «por caminhos cruzados/ complexos desvios/ infinitos trilhos», virando as coisas do avesso, vai deixando um rasto de sentimentos emotivos e vibráteis. E nunca se vislumbra um lirismo alegre. O fluxo sonoro é o do silêncio, da chuva, do vento, da água, das batidas do coração, do amor à mulher eleita, do paroxismo: «O cancro nasce sem choro/ inflorescência súbita e perversa/ com a beleza das papoilas que matam/ e liquefazem o corpo/ encapelado mar rubro de dor/ por segundos minutos horas dias meses anos séculos milénios/ eternidade/ no pulsar do coração/ e nas lágrimas caídas gota a gota/ nas flores que sobrevivem na estufa/ do nosso disfarçado/ espanto.»
sexta-feira, novembro 21, 2003
Sombra em clave de sol (Contos)
Joaquim Evónio
Universitária Editora, Lisboa, 1999
Joaquim Evónio
Universitária Editora, Lisboa, 1999
Joaquim Evónio constrói, através desta colectânea de contos, uma obra insinuante no panorama das letras portuguesas. O escritor, nos seus momentos de evasão à vida quotidiana, inventa um universo pontuado de luminosidades, de fantasias e de sonhos. Às vezes, como em «Vazio», o próprio acto da escrita é um devaneio. Começa com o papel em branco. Espreita o tempo: «A noite era tempestuosa e a natureza vibrava, libertando raivas acumuladas (...). Era o cenário perfeito para criar, inspiração para arrancar do pensamento o húmus da terra espiritual que lavrei ao longo de decénios de experiência e emoções.» E eis o diálogo intimista com a memória: «recordações, histórias suaves ou assustadoras que me tinham alimentado o imaginário até perceber, com grande desilusão, que havia ficção e realidade.» Nos limites da utopia, deixa cair lágrimas sobre o papel - é ele que o diz -, alinha os pesadelos, saúda com calor as fugazes alegrias e aviva a inspiração com a música de Mozart.
Na procura exaltada da palavra, o tempo passa num ritmo comovente.«Tenho os óculos embaciados e a tempestade amainou um pouco, a imortalidade da sinfonia já se sobrepõe ao prosaico bater da chuva nas janelas do meu quarto». Por fim, o cansaço: «o lápis tombou para o chão e a música calou a sua melodia envolvente. Mas ali está o melhor da minha vida.». E ficamos com a ideia de uma escrita dilacerada, próxima do encantamento, da perfeição. Ficamos com essa ideia, num instante, antes da última frase: «Limpo os óculos: ainda estava todo branco o papel à minha frente.».
Este texto é paradigmático, e ajuda?nos a compreender o processo criativo de Joaquim Evónio. Os relâmpagos ficcionistas iluminam paisagens distantes, redescobrem a vida, a inocência perdida e o amor total na «mulher com fogo nos olhos» (Sercial & Malvasia), de «lábios quentes e sensuais», (Amplexo) «bela como um coral» (O Roubador de Sonhos). O seu vocabulário gira sempre em círculo, num movimento vertiginoso, na partida do tempo presente (renúncia à rotina, à melancolia) e na chegada esplendorosa do tempo mágico que dissipa a solidão e restabelece a harmonia. Ao acender esses territórios, como em «Cavaleiro do Vento», atravessa o perfume das palavras, caminha em direcção da luz. A festa das palavras é breve, inaugura um novo cosmos. «Assim continuarei a percorrer os caminhos do Mundo, especialmente ao fim da tarde e ao nascer do sol, com calma e ternura, não vão apagar?se, com a brisa que ora sou, as flamas de amor, nascente e bruxuleante, que brotam de tantas almas em consagração de primaveras floridas e promessa de futuro para todos os seres humanos.»
Esta estética começa a mudar nos contos «À Deriva» e «Náufrago». A vocação do narrador é outra. Transpõe para a ficção cenários vividos, climas existenciais. São histórias do homem no tempo concreto, do mar - do «mar largo e grosso», de golfinhos. E através desta experiência desbrava páginas de uma temperatura humana impressionante. Num estilo original, de maior fecundidade, de observação minuciosa, com poder de linguagem, trabalha temáticas do domínio da antropologia, que é a sua especialidade, em «A Azenha da Saudade», «O Moleiro» e «A Pardinha» - temáticas que são fontes de fascínio a fechar esta obra: «Sombra em Clave de Sol».
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