sexta-feira, novembro 21, 2003


Sombra em clave de sol (Contos)
Joaquim Evónio
Universitária Editora, Lisboa, 1999

Joaquim Evónio constrói, através desta colectânea de contos, uma obra insinuante no panorama das letras portuguesas. O escritor, nos seus momentos de evasão à vida quotidiana, inventa um universo pontuado de luminosidades, de fantasias e de sonhos. Às vezes, como em «Vazio», o próprio acto da escrita é um devaneio. Começa com o papel em branco. Espreita o tempo: «A noite era tempestuosa e a natureza vibrava, libertando raivas acumuladas (...). Era o cenário perfeito para criar, inspiração para arrancar do pensamento o húmus da terra espiritual que lavrei ao longo de decénios de experiência e emoções.» E eis o diálogo intimista com a memória: «recordações, histórias suaves ou assustadoras que me tinham alimentado o imaginário até perceber, com grande desilusão, que havia ficção e realidade.» Nos limites da utopia, deixa cair lágrimas sobre o papel - é ele que o diz -, alinha os pesadelos, saúda com calor as fugazes alegrias e aviva a inspiração com a música de Mozart.
Na procura exaltada da palavra, o tempo passa num ritmo comovente.«Tenho os óculos embaciados e a tempestade amainou um pouco, a imortalidade da sinfonia já se sobrepõe ao prosaico bater da chuva nas janelas do meu quarto». Por fim, o cansaço: «o lápis tombou para o chão e a música calou a sua melodia envolvente. Mas ali está o melhor da minha vida.». E ficamos com a ideia de uma escrita dilacerada, próxima do encantamento, da perfeição. Ficamos com essa ideia, num instante, antes da última frase: «Limpo os óculos: ainda estava todo branco o papel à minha frente.».
Este texto é paradigmático, e ajuda?nos a compreender o processo criativo de Joaquim Evónio. Os relâmpagos ficcionistas iluminam paisagens distantes, redescobrem a vida, a inocência perdida e o amor total na «mulher com fogo nos olhos» (Sercial & Malvasia), de «lábios quentes e sensuais», (Amplexo) «bela como um coral» (O Roubador de Sonhos). O seu vocabulário gira sempre em círculo, num movimento vertiginoso, na partida do tempo presente (renúncia à rotina, à melancolia) e na chegada esplendorosa do tempo mágico que dissipa a solidão e restabelece a harmonia. Ao acender esses territórios, como em «Cavaleiro do Vento», atravessa o perfume das palavras, caminha em direcção da luz. A festa das palavras é breve, inaugura um novo cosmos. «Assim continuarei a percorrer os caminhos do Mundo, especialmente ao fim da tarde e ao nascer do sol, com calma e ternura, não vão apagar?se, com a brisa que ora sou, as flamas de amor, nascente e bruxuleante, que brotam de tantas almas em consagração de primaveras floridas e promessa de futuro para todos os seres humanos.»
Esta estética começa a mudar nos contos «À Deriva» e «Náufrago». A vocação do narrador é outra. Transpõe para a ficção cenários vividos, climas existenciais. São histórias do homem no tempo concreto, do mar - do «mar largo e grosso», de golfinhos. E através desta experiência desbrava páginas de uma temperatura humana impressionante. Num estilo original, de maior fecundidade, de observação minuciosa, com poder de linguagem, trabalha temáticas do domínio da antropologia, que é a sua especialidade, em «A Azenha da Saudade», «O Moleiro» e «A Pardinha» - temáticas que são fontes de fascínio a fechar esta obra: «Sombra em Clave de Sol».

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