segunda-feira, novembro 24, 2003

SonhoGrafias, Armando Taborda, Universitária Editora, Lda., Lisboa, 1999

Nesta terceira obra poética, de Armando Taborda, persiste a obsessão pela imagem. A imagem que o poeta capta e interioriza. É esse o mecanismo lúdico que utiliza para «registar emoções». «Nem sempre é fácil/ registar emoções/ da vida/ e assim se perdem poemas/ frequentes/ por falta de tempo/ no momento certo.» A linguagem aqui é aparentemente legível. Mas o poema que assume obviamente um desvio subtil à linguagem comum, projecta uma mágoa, os instantes encantatórios por viver e transmite também a fugacidade da nossa existência. São múltiplos os quadros que se perdem e que o artífice da palavra não tem ocasião de estilizar. Porque não se limita a transpor para a criação literária aquilo que vê e sente ou que é causa de espanto proveniente do mundo exterior. Em busca da síntese da magia, ele estabelece sempre uma relação exterioridade/interioridade e recorre a um processo deslumbrante de mudança sígnica e de estilização. Eis um exemplo admirável: «Emergindo/ por entre brumas/ de chuva/ a cidade/ parece um sonho/ caído/ do céu.» Muitos dos textos estão repletos destes sonhos. São sonhos em sépia, em música, em quarteto, em cinza, em flash, em diálogo e em branco negro, como o autor fez questão de sublinhar na estrutura do seu trabalho. Desta maneira, as imagens desdobram se em vários planos e reflectem a luz da imaginação inventiva. Os poemas, por vezes, transfiguram tudo. A natureza. A vida interior. Os sons. A música de Schubert. «São impromptus/ são conversas secretas/ íntimas/ monólogos a saltar de mente em mente/ são corpos nus/ soltos/ emoções a viajar de som em som/ são impromptus/ já disse.» Estas metamorfoses constituem um dos segredos da criação poética tabordiana. Na sua peregrinação através do cosmos, «por caminhos cruzados/ complexos desvios/ infinitos trilhos», virando as coisas do avesso, vai deixando um rasto de sentimentos emotivos e vibráteis. E nunca se vislumbra um lirismo alegre. O fluxo sonoro é o do silêncio, da chuva, do vento, da água, das batidas do coração, do amor à mulher eleita, do paroxismo: «O cancro nasce sem choro/ inflorescência súbita e perversa/ com a beleza das papoilas que matam/ e liquefazem o corpo/ encapelado mar rubro de dor/ por segundos minutos horas dias meses anos séculos milénios/ eternidade/ no pulsar do coração/ e nas lágrimas caídas gota a gota/ nas flores que sobrevivem na estufa/ do nosso disfarçado/ espanto.»

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