quarta-feira, dezembro 24, 2003

luis2101@sapo.pt

“Marcello e Spínola: a Ruptura – As Forças Armadas e a Imprensa na queda do Estado Novo (1973-74)”, Manuel Bernardo,

O desconhecimento do passado, recente ou remoto, nunca será bom conselheiro para quem pretenda compreender o presente e trilhar com segurança os caminhos do futuro.
Este livro, ao desvendar alguns eventos que ainda se podem considerar próximos no tempo, vem proporcionar elementos de informação significativos para a compreensão da conjuntura em que vivemos.
Só o contributo de muitas histórias, todavia, permitirá a explicação da verdadeira História, caracterizadora do espaço-tempo em apreciação, identificadora daquilo que é estável e permanente e não apenas passageiro ou efémero.
Do autor, Manuel Bernardo, poderá dizer-se que nunca conviveu directamente com o poder, embora tivesse estado bem posicionado para lhe avaliar as forças e as fraquezas.
Sempre Maquiavel e nunca Príncipe, quase vítima da voragem totalitária em 1974 e 75, desempenhou corajosamente a missão que se atribuiu de esclarecer a comunidade a que sente pertencer e assim publicou, em 1977, Os “Comandos” no Eixo da Revolução – Crise permanente do PREC.
O facto de estar em consciência seguro da sua verdade não impediria que se visse confrontado, entre outros dissabores, com uma acção no Tribunal e um processo disciplinar do foro militar.
A partir de fins de 1974 quando, atrabiliariamente mas sem sucesso, o quiseram estigmatizar, nunca mais descansou e, fazendo apelo ao seu dever para com todos nós, desencadeou uma notória acção pedagógica, veiculada por diversos periódicos e baseada na essência permanente e profunda das coisas, sublinhando com destemor as contradições emergentes de interesses marginais.
Campeão da perseverança, no desenvolvimento dum trabalho profícuo e rigoroso decidiu frequentar na Universidade Católica Portuguesa o Curso de Ciências da Informação, no âmbito do qual, como dissertação final, acaba de presentear-nos com esta lúcida peça informativa a que chamou “Marcello e Spínola: a Ruptura – As Forças Armadas e a Imprensa na queda do Estado Novo (1973-74)”.
Para isso elegeu o período de dezasseis meses que antecedeu a queda do anterior regime perante o Golpe de Estado de 25 de Abril de 1974.
Embora se acredite que a História é linear e não cíclica, difícil é, todavia, resistir à tentação de estabelecer uma analogia entre o referido período e o que actualmente vivemos.
De acordo com a vox populi, o clientelismo e o nepotismo encontram-se agora tão instalados entre nós como estariam no fim do regime marcelista, configurando um modelo a que poderá aplicar-se, sem grande margem de erro, o epíteto de ditadura administrativa. A grande diferença reside, obviamente, na natureza democrática do regime de hoje e, por inerência, na liberdade de expressão, fomentadora e propiciadora de correntes de opinião.
E este livro pode ser considerado um autêntico elogio da liberdade de expressão.
Manuel Bernardo é dotado duma honestidade intelectual bem patente nesta obra. Por isso não se espere encontrar nem especulação nem apressados juízos de valor.
Temos perante nós o resultado duma pesquisa elaborada por um bom profissional, um repositório de factos a todos os títulos interessante.
A notícia é em si mesma um facto e tende a ser cada vez mais importante que o próprio facto que lhe esteve na origem.
O autor fez reflectir no seu trabalho os enquadramentos então vigentes, tanto a nível nacional como internacional.
Colocou em evidência os silêncios do poder e abordou a patologia da comunicação como autêntica doença de que padecia então o tecido social.
Para os que viveram aquela época (1973-74) trata-se duma saudável recordação, hoje mais esclarecida pelos acontecimentos posteriores; para os mais novos, o testemunho da importância da comunicação, que ora não lhes está vedada, como elemento fundamental para o posicionamento perante os factos e para o fortalecimento da capacidade de opção.
Múltiplas referências são feitas neste livro ao Ultramar, tema de fundo de muitos analistas, e às diversas formas de o conservar ou alienar.
Os militares sabiam, desde 1961, que a Guerra do Ultramar não se ganhava pela força das armas, mas também não ignoravam que se poderia perder de armas na mão.
Por outro lado, por mais que tenha sido conveniente, de modo diferencial conforme o sector considerado, que existia apenas uma guerra, facilita bastante a compreensão não escamotear que havia duas: uma subversiva e outra revolucionária.
E se uma fazia apelo ao romantismo da liberdade por via da libertação, encontrando ecos de legitimidade no espírito dos combatentes que se lhe contrapunham, a outra não passava duma componente da estratégia global e totalitária de luta entre os grandes blocos, sendo ainda de referir que um deles, inibido por tácticas de aparente defesa de valores, vai precisamente permitir a vitória do seu adversário e, por consequência, a destruição irreversível dos próprios valores a que dizia prestar homenagem.
A nível nacional, no campo da oposição, verificava-se uma diferença fundamental entre a plataforma da Ala Liberal, que pugnava pelo estabelecimento das liberdades democráticas como condição prévia para a resolução de todos os problemas do País, incluindo os ultramarinos, e a que viria a ser consagrada no III Congresso da Oposição Democrática, em 1973, em que a primeira prioridade era o fim da guerra, seguida da luta contra o capital monopolista e da conquista das liberdades democráticas.
Que modelo de democracia poderia emergir de uma e de outra era fácil de prever, especialmente à luz do conturbado advento das “independências” africanas.
Voltando às soluções que então se perfilavam, no período de 1973-74 que é objecto deste trabalho, sublinhe-se apenas que não é possível negociar sem dispor de graus de liberdade como sustentáculo da capacidade negocial.
Ao precipitarem-se os acontecimentos, acelerados pela má fé de uns e consentidos pela ingenuidade de outros, não só se inviabilizou a negociação como se criaram situações que ainda hoje perduram e têm, na base, o facto inegável de que foi traída a confiança dos povos ultramarinos que confiaram em nós.
Ao servir-nos factos até agora inéditos ou ao apresentar-nos um pacote informativo bem delineado, Manuel Bernardo vem contribuir para a compreensão de fenómenos até hoje inexplicáveis, ou mal explicados.
Este livro evidencia de forma clara e categórica a importância das ideias e da sua circulação na sociedade, designadamente numa altura em que as pessoas mais carentes delas se encontravam.
O autor perseguiu a verdade com denodo e sem obediências, sistematizou os resultados da sua pesquisa e disso nos dá conta.
Vamos ler.

Lisboa, 12 de Abril de 1994

Joaquim Evónio de Vasconcelos

Sem comentários: