PELO CORAÇÃO DAS COISAS
DE
FÁTIMA MEIRELES
Fátima Meireles ensaia novas possibilidades de compor, numa proposta de maior intensidade expressiva. Em poemas, como Cantos Breves da Vida e A Sophia, utiliza novos recursos formais para transmitir os seus sentimentos.
Os poemas valorizam o ritmo da linha vertical, a geometria, a técnica do metro curto e o vocábulo, que, por vezes, é fragmentado, mas apresentam-se também como objecto visual. Vem esta influência certamente dos movimentos de vanguarda, do cubismo, da arte concreta na sua fase mais avançada, da relação íntima da poeta com a pintura. «No tempo e não no espaço a palavra desdobra a sua complexa natureza significativa. A página na poesia neoconcreta é a espacialização do tempo verbal: é pausa, silêncio, tempo. Não se trata, evidentemente, de voltar ao conceito de tempo da poesia discursiva porque enquanto nesta a linguagem flui em sucessão, na poesia neoconcreta a linguagem se abre em duração. Consequentemente, ao contrário do concretismo racionalista, que toma a palavra como objecto e a transforma em mero sinal óptico, a poesia neoconcreta devolve-a à sua condição de «verbo«, isto é, de modo humano de presentação do real. Na poesia neoconcreta a linguagem não escorre: dura.» (1) Mas no conjunto da sua obra, Pelo Coração das Coisas, o processo criador faz-se principalmente com a busca das palavras imprescindíveis, das palavras com pulsações próprias ( em rumores de «sangue» e de «fogo),
«que a prumo adormecem
pela comoção da luz verde e exacta
como chama que se ateia na súbita aparição do verso.»
E é com elas, na raiz da voz, que Fátima Meireles parte para uma nova caminhada poética como uma criança descalça. A sua poesia aborda a «infância», o «amor», a «vida», a «solidão», a «primavera», a «noite», a «paisagem» de «rios» e de «peixes», de «margens» e de «árvores», de «cordas» e de «barcos» - as coisas concretas e abstractas,o real e o irreal, mas é o tempo que se afirma, que se dilata e destaca no seu universo temático,
«o tempo e a dança
pelo outro tempo da memória.»
São os retratos que emergem das sombras, para remexer com a vida, com os sonhos, com as emoções, na claridade esplendorosa da poesia nostálgica, dos versos da dor ou da alegria, na evocação lírica dos «homens» que «esmagam as uvas no lagar», das mulheres que «bordam em toalhas de linho/ delicadas flores», das «crianças» que «adormecem dentro dos seus olhos», da «casa cheia de candeias – luz onde me abandono à saudade/ e o moinho onde a água caía como rosas.»
Um mundo de lembranças e de afectos, um tempo revivido:
«Era a idade em que ia passear contigo pelos campos
(eu corria à tua frente)
enquanto me falavas das árvores que plantavas e vias crescer
e das rosas cor de sangue que a mãe tinha no jardim
eu voava sobre a terra a ouvir-te ao cimo do êxtase
(a boina à feição do teu rosto enfeitado de rugas)
e os teus olhos submersos no próprio ar que respiravas
tu ardias de amor pelas coisas
ao princípio da noite vinhas sentar-se comigo a contar as estrelas.»
O que se perscruta e se sente nestes versos é o encanto de uma ternura luminosa e sublime, o som e o silêncio do fazer poético. Assim vibram outros textos, dedicados a gente da arte e da literattura, desde Cesariny, «poeta/ sol que arde e não se extingue/ e pelo enigma da vida olhas a pomba de cal», a Eugénio de Andrade: «Deixa-te estar assim/ junto à janela/ esquecido a olhar os cedros entre a chuva.» Ou a Picasso: «Há seios verdes no arco de um corpo/ sobre um espelho quebrado».
Fátima Meireles vai marcando a sua trajectória poética com diferentes ciclos e estilos, continua solidária com a solidão humana e não desiste de procurar a plenitude do ser através dos fragmentos mágicos do tempo, das zonas de ida e volta, claras ou obscuras, próximas ou afastadas.
NOTAS
(1) Amílcar de Castro, Ferreira Gullar, Franz Weissmann, Lygia Clark, Lygia Pape, Reynaldo Jardim e Theon Spanúdis, Manifesto neoconcreto ( publicado em 1915 no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil).
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