quinta-feira, abril 07, 2011


A. GONÇALVES DIAS: O POETA DO MARANHÃO



Não se pode dizer que foram alegres os primeiros anos de Coimbra do António Gonçalves Dias. Por algum tempo, viveu isolado, acanhado no seu quartinho de estudante.

As despedidas da sua terra, «bela como a virgem das florestas», dos afagos da família, dos «amigos do Maranhão», doeram no seu peito débil. «Triste foi a minha vida de Coimbra», diz ele em carta a um velho companheiro, «que é triste viver fora da pátria, subir degraus alheios e por esmola sentar-se à mesa estranha. Essa mesa era de bons e fiéis amigos: O pão era alheio, era o pão da piedade, era a sorte do mendigo. Mas ser desconhecido, ou mal conhecido, e viver de tormentos como aqui é mais triste ainda!» (24) Depois, sim; vieram os dias de incontestável suavidade, de profunda camaradagem, de folias e gargalhadas naquela roda de amigos – o João Duarte Lisboa Serra, Alexandre Teófilo de Carvalho Leal, Joaquim Ferreira Lapa, José Hermenegildo Xavier de Morais, António Ferreira de Araújo Jacobina, António Rego, Francisco Leonardo Mendes, Couto Monteiro, António Joaquim Ribeiro Gomes de Abreu, Manuel Bento da Rocha Peixoto, Luís de Bessa Correia, João de Lemos, Lima Poeta, Evaristo Basto, Álvaro Abreu. Os passeios. As festas. Os bailes. Os namoricos. Os versos recitados em misteriosos êxtases, ah! esses versos, como O Meu S. João:


«Já da rainha das noites,

Noite dia a tantas almas,

Já sinto estalar as bombas,

Sinto a grita, sinto as palmas.


Rompe as nuvens o foguete

E lá nos céus estrugiu,

Brilhou, morreu, e ligeiro,

Volta, desce, além caiu.


Crepitam rubras fogueiras

Dança a donzela cantando,

Canta e dança o namorado

Na viola suspirando.


Aqui um rancho aparece

Co’as alcachofras na mão

Que vem saber na fogueira

Segredos do S. João.


Ali gemendo o pinheiro

Co’a labareda abraçada,

Vem a terra, e toda a turba

Solta uníssona risada.

E brilham roupas nevadas

Ao baço clarão da lua,

E tudo corre dos lares

Alegre de rua em rua.


Mais dum sonho descuidado

Agora o estrondo quebrou

Só de velhos, que entre as rugas

Rosa d’amor se murchou,


De velhos porque de gelo

Cobre a idade o coração,

De velhos a quem deslembra

A noite de S. João.


Tudo o mais anda velado,

Tudo de risos se esmalta,

Tudo alegre ao som dos vivas

Por sobre as fogueiras salta.


Retumbam por toda a parte

Os folguedos d’alegria,

Só eu contigo me abraço,

Mimosa melancolia.


Esta é a noite dos segredos

Noite de amor e ciúmes,

Quantos não nascem, não morrem

Hoje à volta destes lumes!

Este aqui a sorte espreita

Dentro da urna singela

Sai um nome… geme, e diz

Não é este o nome dela.


Aquele as estrelas conta,

E se a canta não mentiu

Cada estrela lhe promete

Outra estrela que ele viu.


Esta da fonte ou do rio

Guarda as águas salutares,

Onde num ovo se escrevem

Ou venturas ou pesares


Aquela tem seu destino.

Tudo fechado nas flores,

Há-de ler em cada folha

A história dos seus amores.


Qual na areia faz a cova

E lá se enterra o dinheiro

Que deve sair profeta

Depois do dia terceiro.


Qual no prado, qual na fonte,

Que tem moiras encantadas

Aguarda da santa noite

As donosas orvalhadas.

Todos sabem um segredo

Com que do íntimo seio

Vão arrancar nesta noite

Oculto segredo alheio.


Só eu não tenho uma sina,

Só eu não tenho um condão,

Só eu não tenho quem leia

Dentro do seu coração!


Oh! quem pudera nesta hora

Das profecias d’amor

Ouvir à bela das belas

A sina do trovador!


A fogueira de seus olhos

Já queimou minha alma inteira;

As outras fogueiras falam

Só não fala esta fogueira!


Reverdece o orvalho as flores

Hoje crestadas na chama,

Só meu pranto na flor d’alma

Tão baldado se derrama!


Nem esta noite de encantos

Me desencanta o futuro,

Cede amor hoje aos mais tristes,

Só não cede ao meu conjuro!


Té os moiros na moirama

Têm nesta noite um condão,

Só eu não tenho quem leia

Dentro do seu coração!


Retumbam por toda a parte

Os folguedos d’alegria,

Só eu contigo me abraço,

Mimosa melancolia.» (25)


Num destes festejos, que tinha sempre quadros de lirismo, candura, brejeirice, ronhas e romance, Gonçalves Dias – o namorado incorrigível – pôs-se a catrapiscar uma moça esbelta, de cabelos loiros em caracóis, chapelinho baixo, de palha, enfeitado com flores. Era da freguesia de Santo Varão, lugar da Formoselha, concelho de Montemor-o-Velho, vizinho de Coimbra. Correu atrás dela, enviou-lhe versos por uma alcoviteira, mas não teve outra resposta, senão esta: a fidalga manda dizer que o senhor é um grande trobador, mas não gosta de homens pequenos. Invocava se este caso nos convívios à lareira da casa de S. Gens, do Álvaro de Abreu, em Refojos de Basto, lá para as bandas do Minho. E ele constituía, sem dúvida, um golpe rude na sua auto-estima, que já por si pouco tinha de robustez. «Era Gonçalves Dias (…) como Horácio e como Dante, de baixa estatura, que não excedia 1m,50; mas bem proporcionado e musculoso: tinha mãos e pés mui pequenos, agilidade nos movimentos, passo curto e apressado e grande disposição para caminhar a pé. Sua cabeça bem desenvolvida para os lados das fontes era realçada por uma fronte elevada e ampla, profundamente vincada em toda a sua extensão pelo longo meditar e pelas acerbas agruras da sorte contrária que incessantes o magoavam. Seus olhos pequenos, pardos, serenos, mui vivos e expressivos, espelhavam a franqueza de seu carácter e acentuavam aquele móvel e simpático rosto. Boca e nariz regulares, sendo as asas deste um pouco arregaçadas; tez morena, barbas e cabelos raros, castanhos, macios, anelados nas extremidades, sem contudo denunciarem, quer eles ou as maçãs, por mui salientes, sua origem mestiça.» (26)

O poeta continuou a viver entre a luz viva e baça, no fogo de duas necessidades violentas: escrever e amar. Quando se sentia infeliz dava um dos passeios habituais, percorria uma ou duas léguas, e divertia-se com uma lavadeira tagarela ou com uma tricana sagaz, e a harmonia voltava ao seu espírito.

(Excerto da obra inédita de Luís Dantas, Gonçalves Dias: o Poeta do Maranhão)

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