segunda-feira, dezembro 08, 2008


luisdantas1113@yahoo.com.br



O ACHAMENTO DO BRASIL


VASCO DOS SANTOS


Editora Nova Aldeia, São Paulo, 2006


Os versos desta obra, O Achamento do Brasil, evocam os homens, «os sonhadores dos mares, /Que se norteiam pelo cintilar dos astros» (1), os soldados, os padres, os pajens, os calafates, os degredados, «os embarcados e embarcadiços» (2) nas velhas rotas das naus ou das caravelas num tempo longo de

 

«Tantos dias, tanto mar,

Tantas alegrias pra contar,

Tantas agonias pra lastimar.» (3)

 

Vasco dos Santos inspira‑se nas velhas crónicas e, através de um processo de intertextualidade, cria outra linguagem repleta de rimas, de sonoridades, de vibrações.

 

«Com a manhã serena e calma,

Procedeu-se à contagem,

Como sempre se fazia,

Das naus e das caravelas

E de toda a marinhagem

E de tudo quanto nelas havia.

 

Perante o espantado olhar

E os escancarados olhos,

Faltara uma à chamada geral.

 

O mar era calmo, sem ondas,

Nem sargaços, nem escombros, nem escolhos,

Mas ficara menor a esquadra de Cabral.» (4)

 

Mais adiante, «ao romper da aurora» (5), já ela baloiça nas palavras com

 

«aves que «topamos»,

 Chilreando, alegres, aos bandos» (6).

 

Todos sabem, pela experiência, que a terra está próxima. E esta poética faz ouvir a brisa, a água, o alvoroço e a alegria dos mareantes que

 

«Gritavam à toa, à toa, à toa:

-Terra à vista! À vista! À vistaaaaaa!» (7)

 

            O leitor vai vivendo esta aventura, deixa‑se embalar por este roteiro, deslumbra‑se com as aguarelas que moldam este livro: «os brancos areais da praia aberta» (8), «os homens da terra» (9) com as suas carapuças, «Amarelas umas, Vermelhas outras/ E verdes eram algumas» (10), «armados de arcos e flechas e setas» (11), «os corpos nus/E todos pintados em cores diferenciadas/ E garridas» (12), as moças «graciosas e gentis, /Os cabelos compridos e pretos» (13).

Vê-se ainda as viagens ao longo da costa, «as matas densas» (14), as palmeiras, o esvoaçar de papagaios, a «ribeira grande» (15), o corte de madeiras, as aldeias, as casas, as danças, os ritos, os modos de conviver, a «cruz erguida» (16) - «o símbolo e a luz/A perpetuar-se na terra de Vera Cruz.» (17) 

 

Notas         

(1)   Vasco dos Santos, O Achamento do Brasil, Editora Nova Aldeia, São Paulo, 2006, pg.9

(2)   Vasco dos Santos, O Achamento do Brasil, Editora Nova Aldeia, São Paulo, 2006, pg.14

(3)   Vasco dos Santos, O Achamento do Brasil, Editora Nova Aldeia, São Paulo, 2006, pg.11

(4)   Vasco dos Santos, O Achamento do Brasil, Editora Nova Aldeia, São Paulo, 2006, pp.31-32

(5)   Vasco dos Santos, O Achamento do Brasil, Editora Nova Aldeia, São Paulo, 2006, pg.45

(6)   Vasco dos Santos, O Achamento do Brasil, Editora Nova Aldeia, São Paulo, 2006, pg.45

(7)   Vasco dos Santos, O Achamento do Brasil, Editora Nova Aldeia, São Paulo, 2006, pg.47

(8)   Vasco dos Santos, O Achamento do Brasil, Editora Nova Aldeia, São Paulo, 2006, pg.57

(9)   Vasco dos Santos, O Achamento do Brasil, Editora Nova Aldeia, São Paulo, 2006, pg.65

(10)           Vasco dos Santos, O Achamento do Brasil, Editora Nova Aldeia, São Paulo, 2006, pg.84

(11)           Vasco dos Santos, O Achamento do Brasil, Editora Nova Aldeia, São Paulo, 2006, pg.60

(12)           Vasco dos Santos, O Achamento do Brasil, Editora Nova Aldeia, São Paulo, 2006, pg.82

(13)           Vasco dos Santos, O Achamento do Brasil, Editora Nova Aldeia, São Paulo, 2006, pg.82

(14)           Vasco dos Santos, O Achamento do Brasil, Editora Nova Aldeia, São Paulo, 2006, pg.129

(15)           Vasco dos Santos, O Achamento do Brasil, Editora Nova Aldeia, São Paulo, 2006, pg.144

(16)           Vasco dos Santos, O Achamento do Brasil, Editora Nova Aldeia, São Paulo, 2006, pg.155

(17)           Vasco dos Santos, O Achamento do Brasil, Editora Nova Aldeia, São Paulo, 2006, pg.153

 

 

 

domingo, setembro 07, 2008

luisdantas1113@yahoo.com.br


CARMEN OU A MAGIA DA ARTE

NOS SONETOS DE VASCO DOS SANTOS



Esta poética de Vasco dos Santos inspira-se em Carmen, na dor e na perda da mulher amada: «Estavas tal qual eras – graciosa, /Envolta na mortalha, revestida, /Apartada de mim, no adeus à vida/E a face tão tranquila – cor de rosa. //A morte, assim brutal e insidiosa, /Sem um sequer adeus à despedida, /Partiu sem ser notada ou percebida/Pra viagem sem termo e dolorosa.» (1) Mas não é a morte a grande temática ou a mensagem do poeta: é a vivência de ambos, as experiências humanas, os momentos de contemplar a beleza - o «oceano imenso» (2), a «sombra dos pinhais» (3), as flores dos jardins, os cânticos dos pássaros - as veredas da saudade, as noites da solidão e o destino.

O procedimento artístico de Vasco dos Santos afasta-se do «lirismo com dramaticidade permanente» (4) de Augusto dos Anjos, do Poema Negro ou do soneto O Poeta Hediondo: «Eu sou aquele que ficou sozinho/cantando sobre os ossos do caminho/A poesia de tudo quanto é morto!» (5) Em Carmen, a magia da poesia, transforma a realidade mais cruel numa outra significação: abre os espaços luminosos, faz voltar os «afagos, à distância» (6), instala diálogos íntimos como este: «E sempre me dizias e falastes/ Que o teu amor é meu no meu que tinhas.» (7)

De soneto em soneto, as mágoas, as saudades, os «sonhos eternos» (8) e os múltiplos reencontros afectivos reinventam os mistérios da vida:


«Senti os passos teus pisando a grama

No pé ante-pé, igual caminhas,

Foi um sonho, eu bem sei, como o adivinhas,

Se ninguém falou nada e nem te chama?

E, contudo, eu te vi em outra cama

Onde, ao frio, repousas e te aninhas,

Lá deixei o calor – saudades minhas

Que o amor da minh’alma mais inflama!

Sei que a saudade é vida sempre ausente,

Por mais que a morte esqueça a despedida,

Naquele adeus eterno da partida

Que, um dia, infalível, se apresente

E a promessa haverá de ser cumprida

Resgatados na fé pra outra vida.» (9)

Notas

(1), Vasco dos Santos, Carmen: 47 sonetos + um, Editora Nova Aldeia, São Paulo, 2005, pg.17

(2) Idem, idem, pg.11

(3) Idem, idem, pg 19

(4) Carlos Drummond de Andrade, Nota critica à obra poética de Augusto dos Anjos, Manuscrito, Biblioteca Nacional, Brasil

(5)Augusto dos Anjos, O Poeta do Hediondo

(6) Vasco dos Santos, Carmen: 47 sonetos + um, Editora Nova Aldeia, São Paulo, 2005,

pg.68

(7) Idem, idem, pg.68

(8) Idem, idem, pg.15

(9) Idem, idem, pg.47


sexta-feira, agosto 15, 2008


luisdantas1113@yahoo.com.br


CEREJAS DE CELULÓIDE

por

Zilda Cardoso

 

         Nesta obra de Zilda Cardoso, Cerejas de celulóide, o processo narrativo pulsa e respira num universo de nostalgias. Os tempos - o passado, o presente e, por vezes, o futuro - cruzam-se e misturam-se na reconstituição da vida, das formas de vida e pensamentos das várias personagens.

         Ao ler as primeiras páginas, fica-se com a impressão de que a escritora trabalhou o seu texto a partir de fotografias ou de memórias. «Aquela rua», diz-nos ela, «perdeu o encanto. Não há vendedores ambulantes nem pregões, nem a sorte grande nem a língua da sogra. É lugar onde já não fervilham as paixões e em que a poesia das velhas coisas não deixou marca visível: não há ciganas a ler a sina, nem robertos nem ursos bailarinos nem ceguinhos a cantar as desgraças próprias e alheias.» E naquele prédio «nenhuma mulher gasta os cotovelos à janela, nas varandas nem uma criança.» A rua e o prédio mudaram muito, mas as imagens que nos chegam com a luz, a sombra, o ritmo e o poder evocativo da frase, são anteriores a essa mudança. Como na fotografia, «é a evidência da luz que incidiu sobra um objecto específico, num lugar específico, num momento específico. (...) Aquilo que vemos numa foto aconteceu. Às vezes de uma maneira que não sabemos como ou porquê - a fotografia não explica. Mas aqueles objectos e pessoas que se gravaram sobre o filme e hoje são imagens, ontem existiram. É isso que estimula nossa imaginação

E voltando ao livro, à arte de escrever: é isso que traz magia à literatura - a esta literatura que reacende a vida dos homens no tempo e no espaço através de quadros de uma beleza extraordinária.

         Estamos a ver, por exemplo, a Joana: «teria oito anos.»Veste «roupa de seda e delicada capelina de cor natural com um molho de cerejas no alto - as cerejas, vermelho carregado, tocam umas nas outras e fazem um ruído oco, celulóidico, que a obriga a caminhar com a cabeça direita, pescoço esticado    

Não é um encanto?

         A romancista ou a narradora - dizem-nos que o autor nunca é o narrador, mas uma das suas personagens! - não oculta a sua paixão pelas outras artes - a da pintura e a da fotografia (arte da nostalgia, como já lhe chamaram). Não é por acaso que a fotografia aparece também como objecto descrito na obra. «Foi decerto por este tempo, o Abril dos ramos e dos folares, que Maria do Carmo e Afonso tiraram uma fotografia que os filhos conservam entre as suas preciosidades. É uma minúscula e muito velha imagem de kodak, tirada na praça da Liberdade, em frente ao Banco Lisboa & Açores, no começo do Verão.

         Joana ampliou-a e está numa parede do seu quarto com uma bela moldura dourada.

         Maria do Carmo traz um vestido de crepe bastante comprido, (...) chapéu preto de palhinha fina e luvas, e uma magnífica raposa dourada sobre o ombro. (...) Afonso, (...) fato de abas arredondadas, com colete, nó grosso na gravata, chapéu de fita larga (...)

         O sol projecta as suas silhuetas no empedrado branco do passeio...»

         Vale mesmo a pena acompanhar Zilda Cardoso nesta aventura literária, neste belíssimo romance porque cada um de nós vai encontrar-se no meio de pequenos dramas do dia-a-dia, de estórias de «trânsito intenso», vai imaginar composições musicais - o som de um trombone, de um saxofone - e ver, em obras de arte, «uma mulher a estender um lençol muito branco e diversos panos de cores vibrantes», vai deslumbrar-se com o cinema a «preto e branco» ou ao ar livre, «sentado nos bancos do jardim ou nas guias dos passeios» ou então caminhar para a infância e sentir-se como aquela criança a «dançar à chuva com galochas pretas até ao joelho, salpicando nas poças e subindo e descendo o degrau do passeio, balançando o corpo ao pé-coxinho quando vai para a escola em dias de chuva.»

 

        

        

        

 

 

segunda-feira, fevereiro 25, 2008


O TEXTO ABERTO NA POESIA DE MARIA PETRONILHO

 O verso inicial na poesia de Maria Petronilho parece que vem quase sempre das ânsias, das recordações, dos medos da vida quotidiana, dos momentos de «matar a dor/da alma» (1) ou de «escrever/para me libertar de mim.» (2). Do seu discurso, da sua visão do cosmos, das suas saudades, das suas angústias, partem as palavras como aves soltas na aventura de viver um outro modo de cantar. A voz está presa a um tom magoado, mas vai subir e libertar-se nas paisagens oníricas:

 «A minha vida

é feita de

desertos

 

Levo a boca seca

e os lábios gretados

de tantos gritos

 

Oiço ao longe um rio

Vejo ao longe a luz

irisada

das gotas de água

que brincam nos seixos

Porque haverá tanto caminho

mas nunca lá chego?

Quem me impede de alcançar

o oásis que brilha?

 

No silêncio,

imensos, famintos,

meus olhos acesos! (3)

 

De outras vezes, como no poema Para a minha mãe, vai em busca de novos alentos:

«mãe coragem, atravesso

as altas chamas do mundo

e como tu vou cantando

o fado que, nos calhando,

na nossa voz reconheço,

e de coragem recobro

do pouco de ti que lembro». (4)

 

O turbilhão emotivo que atravessa esta poesia é um jogo de claro-escuro, de luz sombreada, de «parar no escuro/discernir o silêncio/para abranger a fulgência da luz/ e o prodigioso canto das cigarras.» (5) Maria Petronilho deixa sempre o texto aberto, isto é, nunca o fecha em mágoas ou em desencantos para poder ser partilhado, reescrito com outro vocabulário, com outros sonhos, com outras esperanças:

«Sozinha

...mas companheira

 

da inquietação cavaleira

cavalgo no tempo ainda

 

ligeira e longe me leva

- aventura, desventura-

 

gaivota sem rumo que deixa

argênteas pegadas n’areia

adormecida e fria

 

e na lua

o círculo d’uma asa ferida

 

velejeira que almeja

ainda espera

outra vida.» (6)

 

Nestes poemas de contrastes, de pulsações interiores e exteriores, de desassossegos e sobressaltos, existem algumas excepções. Uma delas está aí: Na Madrugada Medito:

 

 «sou livre como vento

Como este mar que sinto

Como o solo aonde piso

Como o ar onde me movo

como a música que oiço

como a luz e quanto vejo

no amor por quanto sinto

na paz de ser-se infindo. (7)

 

NOTAS

 

(1) Maria Petronilho, Nos Ponteiros da Alvorada, Edição de Autor, pg.5

(2) Maria Petronilho, Nos Ponteiros da Alvorada, Edição de Autor, pg.6

(3) Maria Petronilho, Nos Ponteiros da Alvorada, Edição de Autor, pg.56

(4) Maria Petronilho, Nos Ponteiros da Alvorada, Edição de Autor, pg.17

(5) Maria Petronilho, Nos Ponteiros da Alvorada, Edição de Autor, pg.51

(6) Maria Petronilho, Nos Ponteiros da Alvorada, Edição de Autor, pg.70

(7) Maria Petronilho, Nos Ponteiros da Alvorada, Edição de Autor, pg.90

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


terça-feira, fevereiro 19, 2008



MEMÓRIAS DE UM CAPITÃO

(Guerrilha em Moçambique)

 por

JOSÉ VERDASCA

 


José Verdasca escreveu um livro que balança entre a ficção e a história, a geografia e a antropologia, a economia e a política. Os eventos ou os temas trabalhados (As vivências de um Capitão e a guerrilha em Moçambique) são inseridos numa ampla conjuntura cultural. Vários cenários se desdobram através da escrita e das emoções, a começar por Lisboa – a cidade dos anos sessenta com as suas luzes baças, a solidão nas esquinas, os quadros de infortúnio, as descobertas amorosas, a vida sumptuosa nos palacetes da Lapa, os banquetes, as palavras ditas em surdina, a crítica de uma elite liberal – dessa gente com inteligência reflexiva que se desviava cada vez mais do regime político, dos homens que «ocupavam o Parlamento sem nada fazer, discursavam sem nada dizer, e recebiam os polpudos salários sem os justificar e ou ganhar, com o que iam contribuindo, devido a sua criminosa omissão, para que o barco corresse para o precipício» (1) porque a verdade era amarga: «a guerra, criminosa e cruel, continuava a matar, a ferir, a mutilar, quando os mutilados, apenas entre as forças armadas portuguesas, já se aproximavam dos milhares.” (2)

Vem depois Moçambique, a chegada do jovem capitão a Porto Amélia, o primeiro olhar em volta. Vê «a maioria de uma população alienada, e em parte escravizada, descriminada social, económica e culturalmente, vivendo na periferia, quase sempre em «musseques», ou bairros do caniço (de bambu) à beira mar plantados, morando em palhotas de bambu, cobertas de capim, (...) sempre mantida à margem do progresso, desconhecendo o conforto, e afastada da mais elementar participação comunitária» (3). A força do testemunho revela a ideia, a inteligência, a sensibilidade do homem e do militar. O Capitão sabe que já é tarde para se solidarizar com as propostas renovadoras de Paiva Couceiro ou de Norton de Matos. Quase nada se fez após a queda da monarquia e da primeira republica e os tempos são outros: «os povos africanos, naquela altura, já tinham, principalmente, a inabalável disposição de – por todos os meios ao seu alcance - chegar à tão desejada independência política, sempre sonhando com a liberdade.» (4) Abriam-se as portas do futuro, dos dias de amanhã: «só ignorava esse fatal destino quem desconhecia a história, quem não sabia que, no mundo em que vivemos, tudo é redondo, esférico, cíclico, periódico». (5) Por isso, o memorialista não se compadece com a marcha absurda da política colonial, com a mentalidade e o comportamento da administração local: «era, quase sempre, caracterizada pela incompetência, pela boçalidade, e pela prática de injustiças, normalmente a favor das grandes companhias, que exploravam a mão-de-obra nativa, mas gratificavam os administradores, que a recrutavam». (6) Lembra a repressão sobre os makondes em Mueda, Junho de 1960, quando reclamavam da falta de água – lembra esse facto e deixa uma observação flagrante: «era de esperar que os makondes tivessem aderido, em massa, à organização política e guerrilheira Frelimo, fundada no Tanganica em 1962, e implantada em 25 de Setembro desse ano, na capital – Dar El Salam. Nesse caso, não poderíamos ter quaisquer dúvidas de que – muito em breve – a guerrilha iniciar-se-ia em Moçambique, no Planalto dos Macondes, região que reunia as melhores condições para tal, porque de vegetação densa, e de difícil acesso.» (7) E foi o que veio a suceder. «Na madrugada de 25 de Setembro de 1964, o capitão Daniel (o herói na ficção) foi acordado e chamado ao gabinete do comandante do batalhão, para – após um breve, incompleto, e pouco profissional relato do ataque efectuado por guerrilheiros ao posto administrativo do Chae, nessa mesma madrugada – receber a seguinte ordem (sic): reúna metade da sua companhia, a dois pelotões, junte-lhe os serviços necessários – secção de transmissões, cozinheiros, enfermeiro, e outros serviços – e siga o mais rapidamente para o Posto do Chae». (8) Cumpre estas ordens e lá vai, mas deixa muitas outras por cumprir porque se movimenta com os seus homens em busca de soluções para contrariar «a maldita cultura da guerra, que a todos ensina a prática da destruição e da violência, da brutalidade e da morte, a transformar cérebros e corações, e a perpetuar o que de mais condenável existe à face da Terra”. (9)

As «Memórias de um Capitão» não se confinam apenas a evocar os eventos do passado e do presente, a promover o reencontro do homem com a experiência de um breve período da sua vida e com o cosmos em que esta se inscreveu – elas erguem o pendão da paz, iluminam os valores humanos que são fundamentais para dar dignidade à vida quotidiana dos homens em sociedade.

NOTAS

(1) José Verdasca, Memórias de um Capitão, Universitária Editora, 2.ª Edição, Lisboa, 2004, pg.100

(2) José Verdasca, Memórias de um Capitão, Universitária Editora, 2.ª Edição, Lisboa, 2004, pg.100

(3) José Verdasca, Memórias de um Capitão, Universitária Editora, 2.ª Edição, Lisboa, 2004, pg.143

(4) José Verdasca, Memórias de um Capitão, Universitária Editora, 2.ª Edição, Lisboa, 2004, pg.137

(5) José Verdasca, Memórias de um Capitão, Universitária Editora, 2.ª Edição, Lisboa, 2004, pg.138

(6) José Verdasca, Memórias de um Capitão, Universitária Editora, 2.ª Edição, Lisboa, 2004, pp.180-181

(7) José Verdasca, Memórias de um Capitão, Universitária Editora, 2.ª Edição, Lisboa, 2004, pg.176

(8) José Verdasca, Memórias de um Capitão, Universitária Editora, 2.ª Edição, Lisboa, 2004, pg.188

(9) José Verdasca, Memórias de um Capitão, Universitária Editora, 2.ª Edição, Lisboa, 2004, pg.216

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sábado, janeiro 19, 2008



FRAGMENTOS DE SOMBRAS
de
JOSÉ SOUSA VIEIRA





José Sousa Vieira continua a sua experiência poética‭ ‬sem recusar os momentos de lirismo e‭ ‬de inocência‭ ‬em quadros iluminados‭ ‬por‭ «‬um cavalo de cartão‭» ‬ou pela cal que‭ ‬escorre num banco de avenida,‭ ‬num banco solitário,‭ ‬num banco vazio:‭ «‬um banco branco/desejoso de conversar,‭ ‬/contou-me um segredo/que não me pediu para guardar://‭ ‬disse-me/que,‭ ‬nele,‭ ‬banco branco/‭ ‬por plátanos encoberto,‭ ‬/nas noites de luar,‭ ‬/vem,‭ ‬às escondidas,‭ ‬/o Rio Lima namorar.‭» ‬(1‭)‬ De súbito,‭ ‬um banco vazio‭ ‬-‭ ‬um‭ ‬objecto no espaço‭ ‬abre--se‭ ‬à poesia.‭ ‬(pág.33‭)‬.‭ ‬Esta é sem dúvida a função da arte literária,‭ ‬mas não é única.‭ ‬E o autor tem consciência disso.‭ ‬Aqui,‭ ‬nesta obra,‭ ‬muda‭ ‬várias vezes‭ ‬a atmosfera que se respira.‭ ‬As palavras saltam como chuvas‭ ‬nas quatro estações em paisagens de claridades e de sombras ou de‭ «‬fragmentos de sombras‭»‬.‭ ‬Dão‭ ‬lugar‭ ‬ao fado,‭ ‬talvez‭ ‬ao da saudade,‭ ‬do fatalismo,‭ ‬da resignação ou das cores sombrias das terras minhotas:‭ ‬«também de preto se escondem/Jovens mulheres pela saudade/‭ ‬De luto dos que não podem/Ver sorrir-lhes a idade.‭ ‬//‭ ‬E tanto amor assim perdido/Como o grão que se não colhe,‭ ‬/‭ ‬Na emigração,‭ ‬fado sentido/‭ ‬Da miséria que a nós tolhe.‭» ‬(2‭)‬ E dá-se conta de outras mensagens avessas ao conformismo‭ ‬que‭ ‬transitam‭ ‬nos seus versos‭ ‬em estado de alerta e‭ ‬distantes da alegria ou‭ ‬da festa:‭ ‬é o‭ «‬aroma de espingarda‭» ‬que se espalha no‭ ‬papel e‭ ‬a‭ ‬«mão bruta/astuta prostituta/mão dissimulada‭»‬ (3‭) ‬que‭ ‬emerge como‭ ‬símbolo‭ ‬desprezível‭ ‬da sociedade do nosso tempo.‭ ‬O poeta‭ ‬procura refazer valores e‭ ‬reinventar a vida,‭ ‬mesmo quando canta a sua pátria num tom magoado:

‭«‬Saudoso das naus
naufragadas,
-‭ ‬outros mundos
descobertos-
de mansinho
para não as acordar
Portugal vai-se
afundando
lentamente no mar.‭» ‬(4‭)

Mas‭ ‬não deixa‭ ‬nunca‭ ‬morrer a esperança‭ ‬porque no futuro‭ «‬hão-de navegar sem mar/‭ ‬as naus doutras descobertas/Por Portugal a trilhar.‭» (‬5‭) ‬Trata-se aqui de um‭ ‬sonho,‭ ‬de acreditar na alvorada das ideias novas,‭ ‬no desabrochar de‭ ‬novas mentalidades e‭ ‬da vontade dos homens em‭ ‬construir obras diferentes‭ «‬que nos tirem dos atrasos/das tormentas de betão/‭ ‬que nos deixem menos cores/nos mapas da emigração.‭»‬ (6‭) ‬E por detrás de tudo,‭ ‬«dos outros ventos/em que esta poesia voa‭»‬ (7‭)‬,‭ ‬das imagens não explícitas,‭ ‬dos signos ocultos,‭ ‬a lírica de José Sousa Vieira aproxima-se da Canção de outro poeta:‭



O peso do mundo‭

é o amor.‭



Sob o fardo‭

da solidão,‭

sob o fardo‭

da insatisfação‭


o peso‭

o peso que carregamos‭

é o amor.‭ (‬8‭)

NOTA
A capa e as ilustrações são da autoria de Madalena Martins. A artista carregou esta obra com outros enigmas. Em tons de brancos e negros, em linhas horizontais e verticais, deixou aqui também um sopro poético.





1.Fragmentos de Sombras,‭ ‬Edição de autor,‭ ‬Ponte de Lima,‭ ‬1996,‭ pág‬.33

2.Fragmentos de Sombras,‭ ‬Edição de autor,‭ ‬Ponte de Lima,‭ ‬1996,‭ pág‬.34

3.Fragmentos de Sombras,‭ ‬Edição de autor,‭ ‬Ponte de Lima,‭ ‬1996,‭ pág‬.42

4.Fragmentos de Sombras,‭ ‬Edição de autor,‭ ‬Ponte de Lima,‭ ‬1996,‭ pág‬.52

5.Fragmentos de Sombras,‭ ‬Edição de autor,‭ ‬Ponte de Lima,‭ ‬1996,‭ pág‬.69

6.Fragmentos de Sombras,‭ ‬Edição de autor,‭ ‬Ponte de Lima,‭ ‬1996,‭ pág‬.69

7.Fragmentos de Sombras,‭ ‬Edição de autor,‭ ‬Ponte de Lima,‭ ‬1996,‭ pág‬.75

8.Extracto da Canção de Allen Ginsberg.