terça-feira, fevereiro 19, 2008



MEMÓRIAS DE UM CAPITÃO

(Guerrilha em Moçambique)

 por

JOSÉ VERDASCA

 


José Verdasca escreveu um livro que balança entre a ficção e a história, a geografia e a antropologia, a economia e a política. Os eventos ou os temas trabalhados (As vivências de um Capitão e a guerrilha em Moçambique) são inseridos numa ampla conjuntura cultural. Vários cenários se desdobram através da escrita e das emoções, a começar por Lisboa – a cidade dos anos sessenta com as suas luzes baças, a solidão nas esquinas, os quadros de infortúnio, as descobertas amorosas, a vida sumptuosa nos palacetes da Lapa, os banquetes, as palavras ditas em surdina, a crítica de uma elite liberal – dessa gente com inteligência reflexiva que se desviava cada vez mais do regime político, dos homens que «ocupavam o Parlamento sem nada fazer, discursavam sem nada dizer, e recebiam os polpudos salários sem os justificar e ou ganhar, com o que iam contribuindo, devido a sua criminosa omissão, para que o barco corresse para o precipício» (1) porque a verdade era amarga: «a guerra, criminosa e cruel, continuava a matar, a ferir, a mutilar, quando os mutilados, apenas entre as forças armadas portuguesas, já se aproximavam dos milhares.” (2)

Vem depois Moçambique, a chegada do jovem capitão a Porto Amélia, o primeiro olhar em volta. Vê «a maioria de uma população alienada, e em parte escravizada, descriminada social, económica e culturalmente, vivendo na periferia, quase sempre em «musseques», ou bairros do caniço (de bambu) à beira mar plantados, morando em palhotas de bambu, cobertas de capim, (...) sempre mantida à margem do progresso, desconhecendo o conforto, e afastada da mais elementar participação comunitária» (3). A força do testemunho revela a ideia, a inteligência, a sensibilidade do homem e do militar. O Capitão sabe que já é tarde para se solidarizar com as propostas renovadoras de Paiva Couceiro ou de Norton de Matos. Quase nada se fez após a queda da monarquia e da primeira republica e os tempos são outros: «os povos africanos, naquela altura, já tinham, principalmente, a inabalável disposição de – por todos os meios ao seu alcance - chegar à tão desejada independência política, sempre sonhando com a liberdade.» (4) Abriam-se as portas do futuro, dos dias de amanhã: «só ignorava esse fatal destino quem desconhecia a história, quem não sabia que, no mundo em que vivemos, tudo é redondo, esférico, cíclico, periódico». (5) Por isso, o memorialista não se compadece com a marcha absurda da política colonial, com a mentalidade e o comportamento da administração local: «era, quase sempre, caracterizada pela incompetência, pela boçalidade, e pela prática de injustiças, normalmente a favor das grandes companhias, que exploravam a mão-de-obra nativa, mas gratificavam os administradores, que a recrutavam». (6) Lembra a repressão sobre os makondes em Mueda, Junho de 1960, quando reclamavam da falta de água – lembra esse facto e deixa uma observação flagrante: «era de esperar que os makondes tivessem aderido, em massa, à organização política e guerrilheira Frelimo, fundada no Tanganica em 1962, e implantada em 25 de Setembro desse ano, na capital – Dar El Salam. Nesse caso, não poderíamos ter quaisquer dúvidas de que – muito em breve – a guerrilha iniciar-se-ia em Moçambique, no Planalto dos Macondes, região que reunia as melhores condições para tal, porque de vegetação densa, e de difícil acesso.» (7) E foi o que veio a suceder. «Na madrugada de 25 de Setembro de 1964, o capitão Daniel (o herói na ficção) foi acordado e chamado ao gabinete do comandante do batalhão, para – após um breve, incompleto, e pouco profissional relato do ataque efectuado por guerrilheiros ao posto administrativo do Chae, nessa mesma madrugada – receber a seguinte ordem (sic): reúna metade da sua companhia, a dois pelotões, junte-lhe os serviços necessários – secção de transmissões, cozinheiros, enfermeiro, e outros serviços – e siga o mais rapidamente para o Posto do Chae». (8) Cumpre estas ordens e lá vai, mas deixa muitas outras por cumprir porque se movimenta com os seus homens em busca de soluções para contrariar «a maldita cultura da guerra, que a todos ensina a prática da destruição e da violência, da brutalidade e da morte, a transformar cérebros e corações, e a perpetuar o que de mais condenável existe à face da Terra”. (9)

As «Memórias de um Capitão» não se confinam apenas a evocar os eventos do passado e do presente, a promover o reencontro do homem com a experiência de um breve período da sua vida e com o cosmos em que esta se inscreveu – elas erguem o pendão da paz, iluminam os valores humanos que são fundamentais para dar dignidade à vida quotidiana dos homens em sociedade.

NOTAS

(1) José Verdasca, Memórias de um Capitão, Universitária Editora, 2.ª Edição, Lisboa, 2004, pg.100

(2) José Verdasca, Memórias de um Capitão, Universitária Editora, 2.ª Edição, Lisboa, 2004, pg.100

(3) José Verdasca, Memórias de um Capitão, Universitária Editora, 2.ª Edição, Lisboa, 2004, pg.143

(4) José Verdasca, Memórias de um Capitão, Universitária Editora, 2.ª Edição, Lisboa, 2004, pg.137

(5) José Verdasca, Memórias de um Capitão, Universitária Editora, 2.ª Edição, Lisboa, 2004, pg.138

(6) José Verdasca, Memórias de um Capitão, Universitária Editora, 2.ª Edição, Lisboa, 2004, pp.180-181

(7) José Verdasca, Memórias de um Capitão, Universitária Editora, 2.ª Edição, Lisboa, 2004, pg.176

(8) José Verdasca, Memórias de um Capitão, Universitária Editora, 2.ª Edição, Lisboa, 2004, pg.188

(9) José Verdasca, Memórias de um Capitão, Universitária Editora, 2.ª Edição, Lisboa, 2004, pg.216

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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