terça-feira, março 28, 2006

luis2101@sapo.pt

João-Maria Nabais
Palhais

Edições Ceres e Junta de Freguesia de Palhais, Lisboa, 2002

João Nabais publica agora o seu décimo primeiro livro de poemas. Poeta de uma sensibilidade vibrante, produz uma poesia de forte expressão lírica, iluminada por uma linguagem rumorosa, rente à luz, soberba em imagens.
Na construção dos seus poemas, marcados pelo ritmo solto e pelos versos brancos, incorpora temáticas da vida ribeirinha, instantâneos do quotidiano, momentos lúdicos das crianças, crepúsculos à beira mar, mágicas amorosas ou paixões corporais, ideias sobre o acto da escrita: «escrevo para me libertar».
As palavras movem‑se nas sombras ou nos contrastes das cores, atravessam o «orvalho» ou a «noite densa» para captar a beleza primitiva das coisas num processo criativo de estilização: o «rio adormecido», o «mar de lua-cheia», a «música d'água das cigarras», as «aves», as «gaivotas em terra», o «barco/perdido na maresia», a «vela rasgada», as «chuvas brancas», a «praia», a «maré», a «névoa e cinza».
E com tudo isso depois, nas linhas do texto, exprime a sua percepção poética e o seu estilo plástico. Nesses trilhos percorridos, vai assim ficando a luz na poesia, o lirismo nas fontes íntimas, o feitiço na palavra, a melodia no ritmo interior e o êxtase no pensamento imaginário ou no «sabor impossível da terra antiga».


quinta-feira, março 02, 2006

luis2101@sapo.pt

ANTÓNIO MANUEL COUTO VIANA
ÁLBUM DE FAMÍLIA
Câmara Municipal de Viana do Castelo, Viana do Castelo, 1995

Este texto poético reflecte um exercício de memória fecundante: rein­venta a vida de heróis que se movimentam num espaço e num tempo de vários deslumbramentos. E foi a saudade — «a saudade cheia de emoção «— a dar voz e ânimo ao poeta para realizar um itinerário de reencontros intensamente afectivos. Da evocação genealógica, e numa síntese exemplar, emergem os retratos romanceados em verso que cons­tituem o «álbum de família».
António Manuel Couto Viana transpõe para uma poesia de raiz lírica a tragicidade do romantismo camiliano e a observação minu­ciosa do realismo queiroziano. Para avaliarmos essa emocionalidade bastam alguns versos de um poema de renovação rítmica que põe em cena os «antigos cavalheiros da família»: «surgem todos / De um romântico e imenso guarda-fatos, / Cheirando a naftalina os trajos e os modos, /A caminho do álbum de retratos.» O vestuário e os adornos estão descritos com detalhe: «Sobrecasacas, chapéus altos e, na mão, / Bengala de castão de prata e de marfim. / Um deles, par do reino, ostenta a Conceição /E, no oiro da farda, o mimo do espadim / (Tinha berço e brasão nas terras de Aboím).» As tintas dos esboços deslizam depois para tonalidades sombrias: «um, em tempo de terror, / Teve morte horrorosa, / Com um tiro anarquista, no enterro do escritor, / Conde de Sabugosa.» E, na configuração das tensões amorosas, «outro enlou­queceu pela feitiçaria /Da noiva que o amou e por bem lhe fez mal.» Não é apenas este poema que nos permite constatar a coexistência de temáticas ou de processos literários explícitos nas obras dos dois maiores escritores portugueses do século XIX. Atente-se em outros versos d'«O Avô Suicida»: «O meu Avô paterno era toda a cidade: /A indústria e o comércio (o vapor e a balança); / Bancos, vinhos, Seguros, Casas de Caridade.. . /E agente consular honorário da França. //Na Havaneza da Praça, / Reunia o escol político local. / Iam ali Junqueiro e o Tio Manuel Graça /Escrever versos, palestrar, ler o jornal», ou ainda em «As Mãos de Minha Mãe»: «Meu Pai, jovem alferes, ia a cavalo / Fazer-lhe pé de alferes à quinta; à Meadela. / E ela começou a amá-lo e a esperá-lo / Debruçada à janela.»
São autênticos rimances na multiplicidade dos dois rumos. Por isso (pelo que exprime do seu poder criativo) se vê uma vez mais o invulgar talento poético de António Manuel Couto Viana. Mas a arte poética tem aqui um outro valor, que é admirável: o testemunho histó­rico. Ao ritmo da sua pulsação interior, o poeta revolve o tempo lento do círculo familiar desde a bisavó a inventar biscoito (o biscoito de Viana) às «antigas senhoras da família» inclinadas sobre as artes de distracção (os bordados, os doces, os arranjos florais) ou concentradas na «leitura, à luz do candeeiro», desde o pai a bater-se fervorosamente pela causa monárquica ao primo Zé Antunes a viver o sonho de repu­blicano nas barricadas do «fatal 31 de Janeiro». Mas também se escutam as serenatas e as valsas da Tia Rosalina «pra alegrar as nossas festas» e avivar nas nossas memórias a diversidade da vida profunda.