MÁRIO DOMINGUES
A SUA OBRA - DA ESCRITA À TRADUÇÃO
(Texto extraído da obra inédita, Mário Domingues, por Luís Dantas)
Pala lá das peças jornalísticas que deixou em jornais ou revistas, como A Batalha, O Repórter X, Detective, Ilustração, O «Notícias» Ilustrado», O Século, Primeiro de Janeiro, Renovação, ABC, Pátria, Civilização, Vida Mundial, Sol, Notícias de Lourenço Marques, La Libertad (Madrid), Mário Domingues traduziu para editoras portuguesas obras de Walter Scott (1731-1832), William W. Collins (1721-1759), Charles Dickens (1812-1870) e foi autor de biografias de Fernão Mendes Pinto, Bocage, Fernão de Magalhães, Luís de Camões, D. João VI, Cardeal D. Henrique, D. João III, D. Sebastião, Padre António Vieira, Marquês de Pombal, Inês de Castro, D. João V, D. Dinis e Santa Isabel, D. Manuel I, D. Pedro, D. Afonso Henriques, D. Maria, Nuno Álvares Pereira, D. João IV, romances, novelas, obras dramáticas, livros policiais ou de aventuras assinados com pseudónimos inspirados em nomes ingleses ou franceses (William Brown, Henry Dalton, Philip Gray).
Os heróis das suas obras são estadistas, guerreiros, monges, poetas, navegadores, mulheres santas, oradores sagrados, profetas, libertadores, cavaleiros andantes, vagabundos, fraldisqueiros, intrujões, e vêm de todos os tempos e de todos os lugares. Vivem na luz ou na sombra das suas páginas, o triunfo e o fracasso, a bênção e a praga, a sorte e a desventura, o castigo e a recompensa, a inocência e a mácula, o choro e a galhofa, o amor e o desprezo.
Mário Domingues contribuiu, ao longo da sua vida, para a inovação e o esplendor da literatura portuguesa. Em 1960, publicou O Menino entre gigantes – a evocação da vida atribulada de um rapazinho mulato, quase negro, na sociedade lisboeta do início do século XX. Afastado da mãe africana, foi acolhido com afecto no seio da família paterna, mas não se livrou de preconceitos raciais, de vexames e de tormentos que abalaram o seu espírito. «É certo que só a escola lhe revela os meandros sinistros do preconceito racial, e José Cândido, felizmente robusto, poderá, à força de punhos, castigar aqueles que mais ostensivamente o ofendiam, mas nem por isso o choque deixa de existir. E não só através do colega que recusa a ficar sentado a seu lado, porque o pai lhe disse que todos os pretos cheiram a catinga, mas também por via da revelação da colega Florinda, que lhe entremostra as intenções pérfidas de Cândida, que pretendia arrancar-lhe uma declaração só para revelar o seu desprezo pelos homens de cor.
Por certo que o tom coloquial deste romance – ou antes, desta longa narrativa memorial – lhe fornece foros de coisa vivida, que a memória amontoou e que a escrita agora permite transformar em matéria de meditação. O pequeno José Cândido penetra assim dentro do labirinto estreito, rígido, de uma pequena-burguesia (e também muitas vezes de uma média-burguesia), que se debate nos últimos anos da monarquia em busca de uma tranquilidade, sem todavia o conseguir e sem que a proclamação da República altere substancialmente o teor de vida existente. O quadro dos valores sociais é muito rígido, mantém-se inofensivo a quaisquer modificações e, por isso, o trânsito de um ponto para outro efectua-se obedecendo a valores há muito estruturados e que não é permitido corroer decisivamente. José Cândido é-nos apresentado como uma das peças mais ínfimas dessa engrenagem complexa, absurda nos seus próprios fins, já que, em todas as páginas, José Cândido se nos revela um ente passivo, completamente esmagado pela imponência das figuras que lhe modelam e orientam a vida. É bem patente a simbologia do título, que não pretende significar outra coisa que não seja denunciar a situação peculiar do mulatinho detido pelas molas ocultas de um maquinismo cuja eficiência ignora e que, nesta primeira parte do memorial, ainda não conhece com perfeição. É por isso que, em grande parte do texto, pressentimos que tudo se prepara para um desenlace frutuoso com Belmira, cujos beijos estalados, violentos como explosões de granadas, se juntavam ao encanto expressivo dos olhos garços, dos cabelos ruivos, das faces plenas de sardas. O amor obsessivo que a rapariga ainda impúbere – ou quase – começa a alimentar pelo seu Zézinho, há-de encontrar o seu ponto extremo de tensão, na revelação que a sua carne adulta lhe dá uma virilidade praticamente insuspeitada até então. Por intermédio de outrem, revela-se a finitude do corpo, a sua dimensão exacta, aquela com a qual há-de vir a contar o jovem José Cândido. Este elemento iniciático – ou pelo menos assim apresentado – é o termo natural de uma primeira parte em que a infância se reconstrói com o aproveitamento sistemático das mil e uma maravilhas que a memória armazena e que se desfiam cronologicamente. Escrevo esta palavra cronologicamente, com a certeza de ter batido num dos elementos característicos da arte romanesca de Mário Domingues. E não só dele, também da grande maioria dos romancistas portugueses, que ainda se não deram conta de que a memória funciona descontinuamente. Se M. Domingues se tivesse furtado a este lento exercício de descobrir, na memória, os pontos em que as datas se conjugam eficientemente com os acontecimentos, não teríamos, por certo, um romance tão ordenado, mas uma massa de elementos que, mais amplamente nos tornaria possível a visão complexa de um mundo também complexo. O novelo da memória está muitas vezes enrolado com a ponta para dentro – perdoe-se este recurso a uma imagem de Fernando Pessoa – e por isso algo se perde neste desbobinar cronologicamente exacto. Na verdade, podemos perguntar, quais as relacionações que podemos estabelecer entre estes factos, os factos de uma infância cuidadosamente isolada das suas ligações com uma vida posterior, e tudo o que veio a acontecer na marcha do tempo? E como podemos entrever o perfil exacto da duração do autor Mário Domingues, se a sua personagem central não perde, em nenhum momento, a lenta meditação dos valores estruturados dentro de uma concepção antes estática do tempo?
Não posso deixar de reconhecer que não é apenas em Mário Domingos que surpreendemos uma tal ausência de compreensão deste fenómeno, embora, como é evidente, haja dentro deste texto denso, uma intenção que nos pode revelar a necessidade de uma construção tão fielmente datada. É que a primeira intenção de Mário Domingues é descobrir a maneira como a sua mesma duração se foi definindo, ou seja, a maneira como foi conquistando as suas linhas de força. E em verdade podemos compreender que o tempo se estabelece dentro de um quadro deveras limitado. Vejamos: o primeiro choque é aquele em que a criança se descobre em casa dos padrinhos, suja, comendo numa gamela, com as mãos; imediatamente a seguir, a avó, essa extraordinária D. Romana, que se recusava a aceitar quaisquer preconceitos raciais – em que o seu grupo social abundava – o transfere para os carinhos múltiplos de várias mulheres e de um avô um tanto romântico, ou inteiramente romântico; o choque seguinte é a descoberta de um mundo novo, a descoberta da própria natureza, que a Porcalhota virá entremostrar. A esta descoberta devemos juntar vários liames importantes: um é, na verdade, a descoberta da própria natureza, com os seus muitos fenómenos que o rapazinho educado num andar lisboeta, estava longe de poder adivinhar; a segunda é a descoberta das diferenças essenciais existentes entre o sexo masculino e o sexo feminino. Estas duas surpresas agem em sentido paralelo, a criança descobre os valores mais fundamentais da natureza, embora ainda não seja capaz de os conjugar com a totalidade de uma posição do homem dentro de um universo deveras complexo. É evidente que só o tempo, no seu próprio fluir ininterrupto (aceito aqui a explicação de tempo que pertence a M. Domingues, pois só deste modo nos podemos integrar no seu fluxo romanesco) irá descobrindo as molas mais fundamentais do existente, do real mais imediato (todas as funções da mediatidade se referem a um tempo – passado, a um não real que em alguns momentos nos parece ser entrevisto dentro de uma forma dinâmica que, apesar de atemporal, nos revela a estrutura da sua realidade). A experiência acumula-se, muitas vezes parece não ter sentido, o mediato instala-se então dentro da própria fragrância do imediato e o romancista irá descobrindo, pouco a pouco, que os elementos aparentemente desconexos contribuam para a decisiva formação do perfil do autêntico. Isto pode, talvez, resumir-se numa fórmula, em que não deixará de haver a inexorável secura – e traição das fórmulas –: nada pode ser desprezado quando é a maneira como se pretende descrever a formação de uma personalidade, que está em causa, por mais insignificante que esta seja, e por mais íntimo que seja o pormenor.
Não deixa de ser um tanto revelador dos preconceitos que predominam na área social onde se revelava o mulatinho, o espanto que alguns professores – e não só eles – revelam perante a capacidade intelectual do jovem aluno. O professor de alemão, um «herr» qualquer coisa, confessa a sua surpresa perante o valor intelectual do jovem mestiço, que supera todos os colegas de turma, brancos e, além disso, mais velhos. Preconceito que, ainda hoje, podemos entrever em frases como «os negros são crianças grandes». A manutenção secular do preconceito entende-se pela necessidade de explicação da vontade de domínio que particulariza certos sectores das populações arianas e que as forças a encontrar. Para a sua tutela, uma explicação convincente, ou, então, uma explicação que apresente o máximo de possibilidade de verosimilhança, para poder responder pela manutenção de um estado de coisas que não só deprime como ajuda a perturbar o retrato da pessoa humana. É o caso, por exemplo, dos Estados Unidos, onde, depois de o negro ter revelado que não é, de modo algum, a criança que pretendem determinados teóricos racistas, na esteira de velhas doutrinas colonialistas (que, aliás, vieram encontrar na Europa nazi uma virtualidade prática que matou alguns milhões de judeus), se optou por outra fórmula de comportamento: o negro deve manter-se no seu lugar, para poder ser respeitado. E o manter-se no seu lugar, significa, dentro da expressão mais directa que podemos encontrar para o definir, manter a distância a que o respeito pela intangibilidade do branco, o deve manter. O problema, com algumas variantes para pior, alargar-se também às doutrinas do «apartheid» sul africano.
Regressemos, porém e mais directamente, ao âmbito do livro de Mário Domingues. O menino entre gigantes não se deixa esmagar, embora mantenha o olhar melancólico e magoado que há-de revelar sempre, em todas as circunstâncias da sua vida, o choque com uma realidade trágica. E, quando um companheiro do pai lhe revela as vicissitudes passadas pela mãe, o mundo revela-lhe outra faceta, não menos cruel. O pai perdeu a luta perla libertação da mãe, que continua a trabalhar como serviçal numa roça da Ilha do Príncipe (os elementos fornecidos por Mário Domingues, permitem identificá-lo como a Roça Infante D. Henrique). Não lhe foi possível arrancá-la às engrenagens de uma máquina cruel, destinada a esmagar a pessoa humana, serviçal que foi sua companheira e é a mãe do filho. Inventam uma doença, médicos e companheiros brancos, para o afastar da luta travada para poder levar a negra angolana para Lisboa, para junto do filho. E a revelação súbita e violenta desta mãe viva, é um golpe que mostra ao jovem José Cândido, o quanto é postiça a orfandade que lhe inventaram, para o afastar, radicalmente, do mundo negro que também é o seu (e, aliás, um outro preconceito resvala insensivelmente nas conversas da avó Romana: o mulatinho é inteligente, apenas porque a mãe é filha de gente grande lá da terra dela). Ei-lo, finalmente. Perante um outro valor que só indirectamente lhe pertence, já que, em boa verdade, a mãe está irremediavelmente cortada da sua vida. O jovem mulato é o órfão para todo o sempre e essa orfandade é tanto mais viva quanto mais involuntária e irremediável. O mundo já pouco mais tem a revelar-lhe e, por isso, compreendemos que o encontro com a realidade do corpo, revelado pela intervenção de outrem (neste caso a ruiva Belmira), seja o obstáculo que lhe falta transpor para entrar no âmbito do seu próprio tempo. É o que faz. E agora devemos aguardar a sequência, pois que, sem dúvida alguma o romance de Mário Domingues é um documento indispensável para poder julgar os últimos anos do século passado e os deste século. Ao mesmo tempo que se revela também documento indispensável para estudar a posição do homem de cor na sociedade lisboeta da sua época.» (1)
OS ÚLTIMOS DIAS
Quando o conheci, por um mero acaso na redacção do jornal O Século, não me apercebi se o velho jornalista tinha desatinado. Pareceu-me que andava por ali com olhar errante e coração fraquejado, cumprimentando um ou outro colega com vénias para voltar a sair num choro silencioso. Depois, agarrado ao bordão, retirava-se para as bandas da Ribeira Nova, a S. Paulo. Talvez fosse beber um bagaço e acender recordações de tempos resplandecentes… E morreu assim, com essa mania, quase esquecido, em 1977.
Nessa época, mais década, menos década, no restaurante O Cantinho da Amizade, as suas memórias luziam na roda de amigos e admiradores: o Abílio, director de farmácia, Luís Figueiredo, médico especializado em oftalmologia, Gaspar Malheiro, fidalgo boémio de Ponte de Lima, Abel, dono de uma tasquinha na freguesia da Graça, os Falcatos, o Manuel, professor de desenho, o João, que foi médico sem fronteiras, e o António Domingues, filho do Mário, pintor surrealista e ilustrador de várias obras do pai.
Notas
(1) Alfredo Margarido, A Experiência de um mulato muito escuro, quase preto, em Lisboa, «Cabo Verde», Boletim de Propaganda e Informação n.º 143, Praia, 1 de Agosto de 1961, pp. 16-19