quarta-feira, fevereiro 11, 2004

PARA UMA RELEITURA DA POESIA DE JOÃO MARCOS

João Marcos fez a sua estreia literária em verso. Na edição de «Polifonia Singela» (1), o poeta viva as paixões da sua juventude em cânticos de despedida, de louvor à natureza, à alegria dos sentidos, aos heróis nacionais (poetas e navegadores) ou de exasperação quando se confronta com as chagas sociais do seu tempo.
Neste percurso de três anos (1937-1940) encontramos algumas afinidades com o lirisno e a temática da poesia cesariana. É o campo que os une numa mesma visão da paisagem rural pontuada de «madressilvas cheirosas» (2), de «rosas na roseira» (3), de azáfamas agrícolas, de «solos bravos, maninhos, / Que expulsam seus habitantes.» (4). «Desaumenta a aldeia, cresce um ermitério:/São tuberculosos para o cemitério, / São milhares de homens a fugir do lar» (5) porque em muitas «casas (…) não arde a lenha! – Casas apagadas, tristes vulcões de ais! – /Se é vazia a tulha, se não mói a azenha! / (Corpos descarnados são molhos de lenha…) E se a loja, perto, já não fia mais!» (6). Mas a emoção em torno dos dramas dos homens do campo é muito mais profunda e, Marcos. Com fios de realismo tece versos perduráveis de intensas vibrações humanas. Outros escritos em «Um Novo Mundo Perfeito» (1953) mostram as mesmas características nos registos da vida que borbulha nas ruas da cidade: «Bateram oito, nove horas, / Dez horas, onze da noite…/ Nas ruas, o proletário/ Vagueia a tremer de frio.» (7) Depois, (em «Colonizados») manifesta iguais preocupações: rememora nos acontecimentos políticos chilenos a «afronta/ à consciência universal» (8) – ou na «alma de engenho» o «negro exangue suando/ cantando um samba que chora.» (9)
Esta poesia resplandece por dentro dos sons, das luzes, das sombras, dos gritos, da vida. «Faz-nos participar numa possibilidade dessa mesma vida, que nós próprios, leitores, estamos vivendo, numa possibilidade essencial.
Na medida em que, ao ler, vibramos com essa essência humana iluminada e poetizada, vivemos a verdade; na medida em que vibramos com ela, única e simplesmente através da sentida percepção da forma verbal, vivemos a concordância da verdade com a beleza.» (10)
Numa análise mais detalhada seria possível aproximar as suas expressões literárias da «Escola Nova» ou do «Neo-Realismo». Existem, sem dúvida, temáticas e clarões instantâneos de sensibilidade muito semelhantes. O poeta combatente por «um novo mundo perfeito» não aflora directamente os movimentos sociais e as ideias filosóficas, mas deixa transparecer no tempo da sua criação literária algumas referências associadas aos conceitos de «liberdade» e «democracia». E parece ser exactamente nesta direcção que devemos tentar entender a poética exortativa da sua última obra («Manhãs de Abril») escrita e vivida no momento histórico em que «O corpo de Lisboa pulsa em festa, / o sangue regorgita em suas veias, / transborda, vai às vilas, às aldeias, e volta carregado de giesta.» (11) De giesta ou de renovada energia que corre como «Caudais que trazem vagas em cachão/ de enxadas e de moços a cantar, / de redes e canastras em vulcão, / impávidos dançando sobre o mar.» (12) Mas também de uma voz protestatária que transporta consigo o desassossego. «Agora que se perdeu o sol de Abril e voltam as nuvens aos molhos, / que as sombras se aproximam de uma noite sem lua, / volta a raiva a faiscar nos nossos olhos.» (13)

NOTAS

(1) Norte-Editora, Rio de Janeiro, 1946
(2) Verde, Cesário, O Livro de Cesário Verde, Minerva, Lisboa, pg.141
(3) Marcos, João, Polifonia Singela, Norte-Editora, Rio de Janeiro, 1946, pg.32
(4) Verde, Cesário, ob.cit., pg.142
(5) Marcos, João, Polifonia Singela, pg.21
(6) Marcos, João, Polifonia Singela, pg.21
(7) Marcos, João, Um Novo Mundo Perfeito, Edições Marânus, Porto, 1953, pg.140
(8) Marcos, João, Colonizados, pg.48
(9) Marcos, João, Colonizados, pg.12
(10) Pleiffer, Johannes, Introdução à Poesia, Publicações Europa-América, Lisboa, 1966, pg.92
(11) Marcos, João, Manhãs de Abril, pg.10
(12) Marcos, João, Manhãs de Abril, pp. 10-11
(13) Marcos, João, Manhãs de Abril, pg.29



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