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«HÁ UMA ETERNA LIBERDADE» NA POESIA DE AMÂNDIO SOUSA DANTAS
PAULO BRITO E ABREU
Ao encetarmos o exórdio, abalançamo-nos ao leme e à letra de Amândio Sousa Dantas. E ponderamos, destarte: certamente, o homem que cultiva as artes liberais, com a palavra e o palato, há-de ser, tem de ser, merece ser, o paladino e campeão da Liberdade. Mas perguntará, agora, o denodado e estreme leitor: qual a substância, ou melhor, qual o fundamento e a raiz, dessa mesma Liberdade?
A sinalização, ou, por vocábulos amáveis, o signo e o sinal, aparecem, lautos e leves, no primeiro poema. Sousa Dantas invoca o seu Verbo com a coragem do letrado, e no cor e na esperança dos grandes Poetas. Ao Logos pede ele: «Protege-nos dessa doença/ De animal domesticado», e mais adiante se coloca e desloca, afinal, «contra tudo o que definha na cidade».
Munidos já estamos de um certo viático para a nossa viagem. Contra tudo o que seja tecnocracia, diabolismo, e separatividade, ou seja, contra a lança do medo e «o muro de Berlim», Sousa Dantas vai erguendo uma pousada que com palavras se constrói… A linguagem é sempre urna liga, porque a língua dos Poetas é a casa do Ser. Não esqueçamos, porém, que de Amândio a vivenda foi feita «rente à idade e às primeiras flores», ou melhor, jamais olvidemos que, na mónada margem, o Amor é que nos leva «ao cume do universo». Queremos dizer que, entre outras coisas, e loisas longânimes, podemos assertar e estruturar, afinal, o nosso Amor como a nossa morada.
E aqui se ergue, em altitude, bem altivo e altaneiro, o símbolo da árvore. Ela é a madeira, ou melhor, a matéria-prima ou matriz, com que o mundo foi formado. Amândio Sousa Dantas a trata por «companheira» e nos informa que ela é o «amparo e guia do solitário»; quase estaríamos tentados a dizer que, para este Vate, Amor, casa, árvore e terra fazem parte do mesmo campo simbólico. Encaremos, dessarte, a Natura como aquilo que nasce e é nativo; encaremos, também, o nosso Amândio como o amado criador, a criação que se desvela de Alma dada com a criança. Ele mesmo nos confessa, no palato ou no palácio do Ser: «Assim escrevo como a criança que gatinha…»
E assim voltamos ao poema que citámos em primeiro lugar: o infante é seguramente o «bom selvagem» ou naïf e nanja e jamais o «animal domesticado» a que nos habituaram, na rotina, os nossos códigos e leis, isto é: ao sensabor e ramerraneiro da vida prosaica opõe-se o espanto e a admiração que, em todos os países e em todas as épocas, leva os homens e mulheres a amar, a versejar, a filosofar. Por isso especulamos na fímbria do Espírito, por isso a Poesia, como queria João Belo, é seguro sinal de espectáculo e marianismo… Talvez chegue o dia em que se descubra, afinal, que Amândio Sousa Dantas e seu irmão, Luís de Sousa Dantas, são devotos partidários da Deméter e da Ceres, ou melhor: quer madeiro a criação e o crianço e a cruz demandam crescimento. São as crianças, segundo o Poeta, que dão «às palavras as cores do poema»; e não será então o «liber», que ora temos entre mãos, um quadro liberal de inocência, alacridade?
Consideremos na frol, no conspecto e no aspecto: a capacidade efabulatória, nos meninos, é extraordinariamente impressionante e vivaz; não nos informa, na «Poética», Aristóteles, que o Poeta é mais efabulador que versificador? Quem diz fábula diz Mito, mentira, ilusão; quem ora fábula, interessa-se por Mito.
Quando Amândio Sousa Dantas, dessarte e na Arte, se manifesta ou dá a mão «contra tudo o que definha na cidade», nunca será de mais frisar que o homem da grande Lisboa é, de certa forma, um Poeta acorrentado. Já o dissemos, noutro sítio, e voltamos a afirmar: o ser humano pode viver, insistir e ex-sistir, sem computadores, comboios e locomotivas; não pode o humano ser, porém, viver sem Arte, sem Poesia, e sem a mítica, alegórica ciência. E atenta no preito, amigo leitor. Por um caso e um acaso objectivos e cordiais, o dia da Liberdade foi o dia para nós eleito e liberado para lavrarmos o elóquio. Falamos, como sabes, do 25 de Abril. Pois, para Amândio Sousa Dantas, como vais ver, a Liberdade ou liberalidade são talvez mais ecológicas e ônticas do que propriamente lógicas, ou liminarmente políticas. Talvez também a Poesia (e no poético pensamento incluímos a religião), talvez também a música e a mentira definam, sem fim, o homem como um ser deletreado e alegórico, como o ser que, ao voar ou vocalizar, já clama, na mente, pelo místico Verbo. Tal é a matriz e a substância, ou melhor, a radicalidade, de Amândio Sousa Dantas. Eis um Vate que, na terra, contempla a janela, a Saudade, as misteriosas e rosas «gotas de orvalho». E provável que essas gotas sejam orbes amorosos que pousam nas plantas. Como estrelas à espera que um profeta as interrogue… E se é missão, para o ser humano, se irmanar com o semelhante, é bem mister, para o mistério, cultivar a Via Láctea.
Lisboa, 25/4/2000
PAULO BRITO E ABREU
quinta-feira, fevereiro 19, 2004
quarta-feira, fevereiro 11, 2004
PARA UMA RELEITURA DA POESIA DE JOÃO MARCOS
João Marcos fez a sua estreia literária em verso. Na edição de «Polifonia Singela» (1), o poeta viva as paixões da sua juventude em cânticos de despedida, de louvor à natureza, à alegria dos sentidos, aos heróis nacionais (poetas e navegadores) ou de exasperação quando se confronta com as chagas sociais do seu tempo.
Neste percurso de três anos (1937-1940) encontramos algumas afinidades com o lirisno e a temática da poesia cesariana. É o campo que os une numa mesma visão da paisagem rural pontuada de «madressilvas cheirosas» (2), de «rosas na roseira» (3), de azáfamas agrícolas, de «solos bravos, maninhos, / Que expulsam seus habitantes.» (4). «Desaumenta a aldeia, cresce um ermitério:/São tuberculosos para o cemitério, / São milhares de homens a fugir do lar» (5) porque em muitas «casas (…) não arde a lenha! – Casas apagadas, tristes vulcões de ais! – /Se é vazia a tulha, se não mói a azenha! / (Corpos descarnados são molhos de lenha…) E se a loja, perto, já não fia mais!» (6). Mas a emoção em torno dos dramas dos homens do campo é muito mais profunda e, Marcos. Com fios de realismo tece versos perduráveis de intensas vibrações humanas. Outros escritos em «Um Novo Mundo Perfeito» (1953) mostram as mesmas características nos registos da vida que borbulha nas ruas da cidade: «Bateram oito, nove horas, / Dez horas, onze da noite…/ Nas ruas, o proletário/ Vagueia a tremer de frio.» (7) Depois, (em «Colonizados») manifesta iguais preocupações: rememora nos acontecimentos políticos chilenos a «afronta/ à consciência universal» (8) – ou na «alma de engenho» o «negro exangue suando/ cantando um samba que chora.» (9)
Esta poesia resplandece por dentro dos sons, das luzes, das sombras, dos gritos, da vida. «Faz-nos participar numa possibilidade dessa mesma vida, que nós próprios, leitores, estamos vivendo, numa possibilidade essencial.
Na medida em que, ao ler, vibramos com essa essência humana iluminada e poetizada, vivemos a verdade; na medida em que vibramos com ela, única e simplesmente através da sentida percepção da forma verbal, vivemos a concordância da verdade com a beleza.» (10)
Numa análise mais detalhada seria possível aproximar as suas expressões literárias da «Escola Nova» ou do «Neo-Realismo». Existem, sem dúvida, temáticas e clarões instantâneos de sensibilidade muito semelhantes. O poeta combatente por «um novo mundo perfeito» não aflora directamente os movimentos sociais e as ideias filosóficas, mas deixa transparecer no tempo da sua criação literária algumas referências associadas aos conceitos de «liberdade» e «democracia». E parece ser exactamente nesta direcção que devemos tentar entender a poética exortativa da sua última obra («Manhãs de Abril») escrita e vivida no momento histórico em que «O corpo de Lisboa pulsa em festa, / o sangue regorgita em suas veias, / transborda, vai às vilas, às aldeias, e volta carregado de giesta.» (11) De giesta ou de renovada energia que corre como «Caudais que trazem vagas em cachão/ de enxadas e de moços a cantar, / de redes e canastras em vulcão, / impávidos dançando sobre o mar.» (12) Mas também de uma voz protestatária que transporta consigo o desassossego. «Agora que se perdeu o sol de Abril e voltam as nuvens aos molhos, / que as sombras se aproximam de uma noite sem lua, / volta a raiva a faiscar nos nossos olhos.» (13)
NOTAS
(1) Norte-Editora, Rio de Janeiro, 1946
(2) Verde, Cesário, O Livro de Cesário Verde, Minerva, Lisboa, pg.141
(3) Marcos, João, Polifonia Singela, Norte-Editora, Rio de Janeiro, 1946, pg.32
(4) Verde, Cesário, ob.cit., pg.142
(5) Marcos, João, Polifonia Singela, pg.21
(6) Marcos, João, Polifonia Singela, pg.21
(7) Marcos, João, Um Novo Mundo Perfeito, Edições Marânus, Porto, 1953, pg.140
(8) Marcos, João, Colonizados, pg.48
(9) Marcos, João, Colonizados, pg.12
(10) Pleiffer, Johannes, Introdução à Poesia, Publicações Europa-América, Lisboa, 1966, pg.92
(11) Marcos, João, Manhãs de Abril, pg.10
(12) Marcos, João, Manhãs de Abril, pp. 10-11
(13) Marcos, João, Manhãs de Abril, pg.29
João Marcos fez a sua estreia literária em verso. Na edição de «Polifonia Singela» (1), o poeta viva as paixões da sua juventude em cânticos de despedida, de louvor à natureza, à alegria dos sentidos, aos heróis nacionais (poetas e navegadores) ou de exasperação quando se confronta com as chagas sociais do seu tempo.
Neste percurso de três anos (1937-1940) encontramos algumas afinidades com o lirisno e a temática da poesia cesariana. É o campo que os une numa mesma visão da paisagem rural pontuada de «madressilvas cheirosas» (2), de «rosas na roseira» (3), de azáfamas agrícolas, de «solos bravos, maninhos, / Que expulsam seus habitantes.» (4). «Desaumenta a aldeia, cresce um ermitério:/São tuberculosos para o cemitério, / São milhares de homens a fugir do lar» (5) porque em muitas «casas (…) não arde a lenha! – Casas apagadas, tristes vulcões de ais! – /Se é vazia a tulha, se não mói a azenha! / (Corpos descarnados são molhos de lenha…) E se a loja, perto, já não fia mais!» (6). Mas a emoção em torno dos dramas dos homens do campo é muito mais profunda e, Marcos. Com fios de realismo tece versos perduráveis de intensas vibrações humanas. Outros escritos em «Um Novo Mundo Perfeito» (1953) mostram as mesmas características nos registos da vida que borbulha nas ruas da cidade: «Bateram oito, nove horas, / Dez horas, onze da noite…/ Nas ruas, o proletário/ Vagueia a tremer de frio.» (7) Depois, (em «Colonizados») manifesta iguais preocupações: rememora nos acontecimentos políticos chilenos a «afronta/ à consciência universal» (8) – ou na «alma de engenho» o «negro exangue suando/ cantando um samba que chora.» (9)
Esta poesia resplandece por dentro dos sons, das luzes, das sombras, dos gritos, da vida. «Faz-nos participar numa possibilidade dessa mesma vida, que nós próprios, leitores, estamos vivendo, numa possibilidade essencial.
Na medida em que, ao ler, vibramos com essa essência humana iluminada e poetizada, vivemos a verdade; na medida em que vibramos com ela, única e simplesmente através da sentida percepção da forma verbal, vivemos a concordância da verdade com a beleza.» (10)
Numa análise mais detalhada seria possível aproximar as suas expressões literárias da «Escola Nova» ou do «Neo-Realismo». Existem, sem dúvida, temáticas e clarões instantâneos de sensibilidade muito semelhantes. O poeta combatente por «um novo mundo perfeito» não aflora directamente os movimentos sociais e as ideias filosóficas, mas deixa transparecer no tempo da sua criação literária algumas referências associadas aos conceitos de «liberdade» e «democracia». E parece ser exactamente nesta direcção que devemos tentar entender a poética exortativa da sua última obra («Manhãs de Abril») escrita e vivida no momento histórico em que «O corpo de Lisboa pulsa em festa, / o sangue regorgita em suas veias, / transborda, vai às vilas, às aldeias, e volta carregado de giesta.» (11) De giesta ou de renovada energia que corre como «Caudais que trazem vagas em cachão/ de enxadas e de moços a cantar, / de redes e canastras em vulcão, / impávidos dançando sobre o mar.» (12) Mas também de uma voz protestatária que transporta consigo o desassossego. «Agora que se perdeu o sol de Abril e voltam as nuvens aos molhos, / que as sombras se aproximam de uma noite sem lua, / volta a raiva a faiscar nos nossos olhos.» (13)
NOTAS
(1) Norte-Editora, Rio de Janeiro, 1946
(2) Verde, Cesário, O Livro de Cesário Verde, Minerva, Lisboa, pg.141
(3) Marcos, João, Polifonia Singela, Norte-Editora, Rio de Janeiro, 1946, pg.32
(4) Verde, Cesário, ob.cit., pg.142
(5) Marcos, João, Polifonia Singela, pg.21
(6) Marcos, João, Polifonia Singela, pg.21
(7) Marcos, João, Um Novo Mundo Perfeito, Edições Marânus, Porto, 1953, pg.140
(8) Marcos, João, Colonizados, pg.48
(9) Marcos, João, Colonizados, pg.12
(10) Pleiffer, Johannes, Introdução à Poesia, Publicações Europa-América, Lisboa, 1966, pg.92
(11) Marcos, João, Manhãs de Abril, pg.10
(12) Marcos, João, Manhãs de Abril, pp. 10-11
(13) Marcos, João, Manhãs de Abril, pg.29
terça-feira, fevereiro 03, 2004
VIAGEM OCULTA DE FÁTIMA MEIRELES
Esta viagem faz-se pela poesia, sob os «enigmas fluidos» ou o mistério das palavras, escutando o ímpeto interior, os sentimentos, as lembranças, as emoções, a vida no seu processo contraditório. Percorrem - se caminhos de outras dimensões «no inquieto cinza da madrugada» (1), no sonho e no encantamento. Buscam-se vivências da magia e do poético: «quero ser vento, /ser mar, /ser sol/ e estrela.» (2) Criam-se movimentos de consciência nos apelos à harmonia do homem com a natureza e à construção ininterrupta da «vida/ (…) vivida». (3) Desafiam-se mistérios e reinventa-se a própria existência numa linguagem que registra «um ritmo próprio num estilo natural e humano. O sentido da vida move-se por todas as coisas.» (4) E assim se cumprem os ciclos do poema na ida e na volta, do universo exterior para o universo interior porque «a poesia», diz a poeta, «é o meu lado de dentro numa viagem inacessível». (5) Esta vertigem do viver é a marca mais profunda da trajectória artística de Fátima Meireles. É mais uma voz que emerge nas margens do Lima com o seu grito e o seu silêncio a transportar as paixões no esplendor do seu timbre feminino.
Luís Dantas
Notas
(1) Fátima Meireles, Viagem Oculta, Edições Ceres, Ponte de Lima, 2003,pg.23
(2) Fátima Meireles, ob. cit., pg.26
(3) Fátima Meireles, ob. cit., pg.86
(4) Amândio Sousa Dantas, Os caminhos da Palavra, no prefácio, pg.10
(5) Fátima Meireles, ob. cit., pg.93
Esta viagem faz-se pela poesia, sob os «enigmas fluidos» ou o mistério das palavras, escutando o ímpeto interior, os sentimentos, as lembranças, as emoções, a vida no seu processo contraditório. Percorrem - se caminhos de outras dimensões «no inquieto cinza da madrugada» (1), no sonho e no encantamento. Buscam-se vivências da magia e do poético: «quero ser vento, /ser mar, /ser sol/ e estrela.» (2) Criam-se movimentos de consciência nos apelos à harmonia do homem com a natureza e à construção ininterrupta da «vida/ (…) vivida». (3) Desafiam-se mistérios e reinventa-se a própria existência numa linguagem que registra «um ritmo próprio num estilo natural e humano. O sentido da vida move-se por todas as coisas.» (4) E assim se cumprem os ciclos do poema na ida e na volta, do universo exterior para o universo interior porque «a poesia», diz a poeta, «é o meu lado de dentro numa viagem inacessível». (5) Esta vertigem do viver é a marca mais profunda da trajectória artística de Fátima Meireles. É mais uma voz que emerge nas margens do Lima com o seu grito e o seu silêncio a transportar as paixões no esplendor do seu timbre feminino.
Luís Dantas
Notas
(1) Fátima Meireles, Viagem Oculta, Edições Ceres, Ponte de Lima, 2003,pg.23
(2) Fátima Meireles, ob. cit., pg.26
(3) Fátima Meireles, ob. cit., pg.86
(4) Amândio Sousa Dantas, Os caminhos da Palavra, no prefácio, pg.10
(5) Fátima Meireles, ob. cit., pg.93
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